O
vômito saía em jatos sobre o carro vermelho estacionado no pátio. O
reflexo  da  lua fazia o líquido viscoso brilhar ainda mais
... Sentia se observada. Sabia que  a patroa  espiava de algum lugar, seu olhar queimava às
suas costas. Ouviu o barulho da  porta de
correr. Precisava da sua cama. Queria que o chão se firmasse e o mundo parasse
de rodar. Segurou-se no carro para não cair e vomitou  mais um pouco sobre o capô. A pulseira de
caveiras arranhou a pintura no lado da porta do motorista. O barulho do metal
arrastando na superfície do veiculo 
arrepiou seus dentes.
-  Me adianta 
um dinheiro?  Tua mãe saiu e não
me deixou nada..
A
moça, filha mais  velha  da patroa, sentada  no sofá da sala com um livro aberto no colo, levantou
os óculos de grau e disse:
-
Mas não faz um mês que tu trabalha aqui, faz? – Ela franze a testa
A
empregada  torce a boca, sacode  a cabeça 
de uma lado pra outro e levanta os dois 
braços  sem acreditar:
-
To pedindo um adiantamento, né!  Vou no
baile e preciso de algum...
-
Eu não tenho muito... De quanto tu precisa? – Puxou a bolsa e abriu a carteira.
-
Ah tem  que ser  uns 
cinquentinha...senão não dá  nem
pra saída. – A estudante  abaixou os
óculos e alcançou a cédula de cinqüenta reais  pra 
empregada  que saiu se sacudindo.
Dançava  antes mesmo de chegar à festa.
Sempre
 acabava o serviço antes das seis e  saía 
para caminhar até a noite. Sem avisar, deixava  a casa e saía sem rumo.   Adorava fumar e perambular  na companhia das luzes dos  postes e da ponta do cigarro que acendia a
cada tragada. Caminhava com as pernas entreabertas, as calças caídas. Queria
ter  nascido homem.
Detestava
aquele serviço. Odiara também os anteriores. Fora pra escola obrigada pela mãe.
Terminara o Ensino Fundamental há poucos anos com muito custo e atraso. O que
poderia fazer para  ganhar dinheiro ?  Nada, nada além  de 
limpar a casa  dos outros que  estudaram mais ou tiveram a sorte de
nascerem  bem. 
Ouviu  ruídos 
dentro da  casa, miados de  gatos, mas não conseguiu prestar muita
atenção.Era tão longe, um outro mundo ofuscado 
pela cerveja.  A cabeça pesou e
ela precisou vomitar mais um pouco.
A
porta envidraçada  de correr se
abriu  e se fechou novamente. Tentou se
equilibrar e chegar na área. Caiu sobre um vaso de folhagens que a patroa
insistia em  deixar ali e arranhou a mão
no piso.
Não
soube quantos minutos  passou . Caída,
vomitando. A porta  arrastou. Levantou e
conseguiu  chegar  na área e engatinhar até o seu quartinho. O
banheiro era  a próxima porta mas não
tinha  forças de ir até  lá e tirar as roupas, quanto mais  tomar um banho.
Deixou-se  ficar na cama, a porta entreaberta. Teve um
acesso de riso ao perceber que os gatos cujo “quarto” era ao lado do seu,
haviam sido retirados. Imaginou que a patroa tivera medo  que ela caísse sobre eles e  os 
transportara para  outro lugar
mais seguro, quem sabe a garagem... A risada ecoou nos fundos da casa.
Na
cozinha, um barulho de torneira aberta e louças. O barulho do fogão elétrico cutucava
 o seu cérebro,.. Era a patroa que sempre
acordava com as  galinhas. Olhou no
celular, sete horas.  A cabeça latejava.
Pegou o travesseiro e  cobriu a cabeça
tentando não pensar  no cheiro de café
que invadiu o ar.
Acordou
mais tarde com a boca seca, a dor pulsava nas têmporas.  O celular marcava 10h30min. A essa hora a
patroa  estava dando aulas de inglês na
sala do outro lado da residência. Sentou-se na cama devagar. A cabeça pesava
cem quilos. O quarto rodou e deitou 
outra vez  sem dormir.
Mandou
uma mensagem pro celular da patroa:
Preciso falar com você.
Me ligue  ou mande uma mensagem.
Menos
de cinco minutos  se passaram e viu o
rosto da patroa na porta do quartinho:
-
Tu estás mandando mensagem daqui? – a patroa com olhos bem abertos sacode a
cabeça de um lado a outro sem acreditar.
-
Me traz um comprimido pra dor de cabeça?- 
Um
minuto depois  viu  voar em cima 
da cama um envelope laranja com dois 
analgésicos.
Sentindo-se
melhor  tomou um banho e saiu com a
mochila  nas costas. Fim de semana, a
idéia era ir pra casa da mãe na  cidade
vizinha.
Na  rodoviária sentiu-se mal. A cabeça doía demais.
Nem lembrava há  quantas horas  estava sem se alimentar. Desde  o almoço do dia  anterior sem comer.  No estômago, só cerveja e os dois comprimidos
com água  pela manhã.
Mandou
um  “Me liga”  pra patroa que retornou na mesma hora.
-
Ai, to aqui rodando, a minha cabeça não pára de doer e eu quero ir pra casa da
minha mãe, mas não posso entrar no ônibus vomitando...
-
Venha para  cá,  tome um banho e  durma um pouco. Pegue  o ônibus mais tarde....
-Eu
não vou voltar pra aí.  Eu.... - Ela a
interrompe:
-
Venha para  cá,  tome um banho e  durma um pouco. Pegue  o ônibus mais tarde....
A
 patroa desligou.
Deixou
a rodoviária  chorando muito  sob os olhares de outras  pessoas esperando ônibus. Vagou pela cidade, sem
forças  sentou-se no terreno baldio ao
lado de uma fruteira  e ali ficou.
Adormeceu na grama. Acordou horas depois com o barulho das vozes de quem
passava na calçada.
Tapeou
a  roupa pra tirar os ciscos e  caminhou  
até uma  parada de ônibus. Pegou
o  primeiro  que 
veio e foi pra casa da mãe.
No
outro dia, domingo à tardinha, ligou  pra
patroa:
-
Oi, sou eu...  Tu vai dar aula amanha
cedo? – sem deixar a patroa  responder
continuou -  Se for,  eu vou mais cedo pra limpar a  tua 
sala...
A
voz ríspida do outro lado do  aparelho
diz:
-
Não precisa  mais vir pra trabalhar.
Venha apenas para pegar tuas  coisas  e receber 
os teus direitos.
-
O que? O que houve? O que foi que eu fiz?
Do
outro lado um suspiro e a voz  ainda mais
seca:
-
Se tu não sabes o que tu fizeste,  eu é
que não vou te dizer.
Larga
o celular  sobre a mesa e com as
mãos  na cintura se vira  para a mãe e diz:
- Mai Godi! 
Que gente mais estressada! Tá louco, hein?
 

 
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