Friends are not FOOD

Friends  are not FOOD

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Com justa causa


O vômito saía em jatos sobre o carro vermelho estacionado no pátio. O reflexo  da  lua fazia o líquido viscoso brilhar ainda mais ... Sentia se observada. Sabia que  a patroa  espiava de algum lugar, seu olhar queimava às suas costas. Ouviu o barulho da  porta de correr. Precisava da sua cama. Queria que o chão se firmasse e o mundo parasse de rodar. Segurou-se no carro para não cair e vomitou  mais um pouco sobre o capô. A pulseira de caveiras arranhou a pintura no lado da porta do motorista. O barulho do metal arrastando na superfície do veiculo  arrepiou seus dentes.

-  Me adianta  um dinheiro?  Tua mãe saiu e não me deixou nada..
A moça, filha mais  velha  da patroa, sentada  no sofá da sala com um livro aberto no colo, levantou os óculos de grau e disse:
- Mas não faz um mês que tu trabalha aqui, faz? – Ela franze a testa
A empregada  torce a boca, sacode  a cabeça  de uma lado pra outro e levanta os dois  braços  sem acreditar:
- To pedindo um adiantamento, né!  Vou no baile e preciso de algum...
- Eu não tenho muito... De quanto tu precisa? – Puxou a bolsa e abriu a carteira.
- Ah tem  que ser  uns  cinquentinha...senão não dá  nem pra saída. – A estudante  abaixou os óculos e alcançou a cédula de cinqüenta reais  pra  empregada  que saiu se sacudindo. Dançava  antes mesmo de chegar à festa.


Sempre  acabava o serviço antes das seis e  saía  para caminhar até a noite. Sem avisar, deixava  a casa e saía sem rumo.   Adorava fumar e perambular  na companhia das luzes dos  postes e da ponta do cigarro que acendia a cada tragada. Caminhava com as pernas entreabertas, as calças caídas. Queria ter  nascido homem.
Detestava aquele serviço. Odiara também os anteriores. Fora pra escola obrigada pela mãe. Terminara o Ensino Fundamental há poucos anos com muito custo e atraso. O que poderia fazer para  ganhar dinheiro ?  Nada, nada além  de  limpar a casa  dos outros que  estudaram mais ou tiveram a sorte de nascerem  bem.


Ouviu  ruídos  dentro da  casa, miados de  gatos, mas não conseguiu prestar muita atenção.Era tão longe, um outro mundo ofuscado  pela cerveja.  A cabeça pesou e ela precisou vomitar mais um pouco.
A porta envidraçada  de correr se abriu  e se fechou novamente. Tentou se equilibrar e chegar na área. Caiu sobre um vaso de folhagens que a patroa insistia em  deixar ali e arranhou a mão no piso.
Não soube quantos minutos  passou . Caída, vomitando. A porta  arrastou. Levantou e conseguiu  chegar  na área e engatinhar até o seu quartinho. O banheiro era  a próxima porta mas não tinha  forças de ir até  lá e tirar as roupas, quanto mais  tomar um banho.
Deixou-se  ficar na cama, a porta entreaberta. Teve um acesso de riso ao perceber que os gatos cujo “quarto” era ao lado do seu, haviam sido retirados. Imaginou que a patroa tivera medo  que ela caísse sobre eles e  os  transportara para  outro lugar mais seguro, quem sabe a garagem... A risada ecoou nos fundos da casa.



Na cozinha, um barulho de torneira aberta e louças. O barulho do fogão elétrico cutucava  o seu cérebro,.. Era a patroa que sempre acordava com as  galinhas. Olhou no celular, sete horas.  A cabeça latejava. Pegou o travesseiro e  cobriu a cabeça tentando não pensar  no cheiro de café que invadiu o ar.
Acordou mais tarde com a boca seca, a dor pulsava nas têmporas.  O celular marcava 10h30min. A essa hora a patroa  estava dando aulas de inglês na sala do outro lado da residência. Sentou-se na cama devagar. A cabeça pesava cem quilos. O quarto rodou e deitou  outra vez  sem dormir.
Mandou uma mensagem pro celular da patroa:
Preciso falar com você. Me ligue  ou mande uma mensagem.
Menos de cinco minutos  se passaram e viu o rosto da patroa na porta do quartinho:
- Tu estás mandando mensagem daqui? – a patroa com olhos bem abertos sacode a cabeça de um lado a outro sem acreditar.
- Me traz um comprimido pra dor de cabeça?-
Um minuto depois  viu  voar em cima  da cama um envelope laranja com dois  analgésicos.
Sentindo-se melhor  tomou um banho e saiu com a mochila  nas costas. Fim de semana, a idéia era ir pra casa da mãe na  cidade vizinha.
Na  rodoviária sentiu-se mal. A cabeça doía demais. Nem lembrava há  quantas horas  estava sem se alimentar. Desde  o almoço do dia  anterior sem comer.  No estômago, só cerveja e os dois comprimidos com água  pela manhã.
Mandou um  “Me liga”  pra patroa que retornou na mesma hora.
- Ai, to aqui rodando, a minha cabeça não pára de doer e eu quero ir pra casa da minha mãe, mas não posso entrar no ônibus vomitando...
- Venha para  cá,  tome um banho e  durma um pouco. Pegue  o ônibus mais tarde....
-Eu não vou voltar pra aí.  Eu.... - Ela a interrompe:
- Venha para  cá,  tome um banho e  durma um pouco. Pegue  o ônibus mais tarde....
A  patroa desligou.
Deixou a rodoviária  chorando muito  sob os olhares de outras  pessoas esperando ônibus. Vagou pela cidade, sem forças  sentou-se no terreno baldio ao lado de uma fruteira  e ali ficou. Adormeceu na grama. Acordou horas depois com o barulho das vozes de quem passava na calçada.
Tapeou a  roupa pra tirar os ciscos e  caminhou   até uma  parada de ônibus. Pegou o  primeiro  que  veio e foi pra casa da mãe.
No outro dia, domingo à tardinha, ligou  pra patroa:
- Oi, sou eu...  Tu vai dar aula amanha cedo? – sem deixar a patroa  responder continuou -  Se for,  eu vou mais cedo pra limpar a  tua  sala...
A voz ríspida do outro lado do  aparelho diz:
- Não precisa  mais vir pra trabalhar. Venha apenas para pegar tuas  coisas  e receber  os teus direitos.
- O que? O que houve? O que foi que eu fiz?
Do outro lado um suspiro e a voz  ainda mais seca:
- Se tu não sabes o que tu fizeste,  eu é que não vou te dizer.
Larga o celular  sobre a mesa e com as mãos  na cintura se vira  para a mãe e diz:

- Mai Godi!  Que gente mais estressada! Tá louco, hein?

Nenhum comentário:

Postar um comentário