No quarto todo branco, persianas entreabertas deixam o ar da
noite entrar. O tecido estampado da cortina dança leve, sem música. Os cabelos
pretos espalhados, afundados no travesseiro macio, contrastam com o alvo da
fronha com poucos bordados. Num sono profundo, vez ou outra, as pálpebras mexem
rápido sem sonhar em acordar. Um ligeiro desconforto nos seios. Os bicos
intumescem e um queimor ardido corre por baixo da pele desde o mamilo até perto
do pescoço. O alimento branco começa a pingar lento e fraco, mas logo um fio
fino começa sem parar. E o leite corre em pequenos jatos.
Sara levanta e senta rápido, pisca algumas vezes. Leva a mão
aos seios que pingam, endurecidos. Com a camisola molhada corre ao quartinho que
fica ao lado e olha a criança num pijaminha rosa que resmunga ainda dormindo. O
cabelinho espetado e preto, os punhos fechados. Levanta o bebê com cuidado e a
leva para o quarto onde dorme. Deita de lado e ajeita a menina pra mamar. O
bebê suga com vontade, fazendo barulhos. O leite, misturado com saliva, escorre
pelo canto da boquinha bem desenhada. A menina sorri enquanto mama e aperta o
dedo indicador da mãe, que não perde um detalhe. Sara quer guardar para sempre
esses momentos que se perdem tão rápido nas memórias do tempo.
A menina dorme mamando. Sara vira cuidadosamente o bebê para
que ela fique de lado. Assim deitada, se a menina regurgitar não corre o risco
de se afogar. Fica olhando e sorrindo para
a filhinha por mais alguns
minutos, seus olhos transbordam carinho.
- Você não vai dormir? – O marido pisca várias vezes e coça
os olhos. - Vai ficar olhando pra ela até quando? – Nas suas bochechas, duas
covinhas aparecem quando sorri.
- Ela não é linda? – Sara pergunta sem tirar os olhos da
menina.
- Sim, - as covinhas ficam mais fundas - é parecida comigo! –
Ele puxa o cabelo dela bem fraquinho e a
beija. – Vamos dormir, amanhã tenho que acordar cedo. – Ele se vira para o
outro lado e Sara olha para a menina
mais um pouco. Não vai levá-la para o
quartinho, daqui a pouco ela
precisa mamar novamente.
As folhas
das árvores dançam, os galhos mexem leves. Não se pode afirmar com certeza quem
é o responsável pelo vai e vem das folhas,
se o vento ou a mão zombeteira do
tempo. No lado de fora do hospital, a vegetação frondosa traz alento àquele
lugar de tantas dores. Uma pequena gruta com uma estátua de uma santa de pedra envolta em folhagens muito verdes, uma
fonte artificial onde a água corre sem parar, completam a decoração do jardim.
Dr. Álvaro conversa
com Bernardo sobre o estado de sua tia:
- O estado
da D. Sara é irreversível. Pneumonia
nesta idade avançada se torna uma doença
bem grave. – O médico olha bem nos olhos do único parente da paciente
que apareceu por ali desde que ela foi internada há alguns dias, vinda do asilo
municipal. – Talvez ela dure mais uma semana,
quem sabe menos... – Os olhos dele não denunciavam pesar. Era apenas um
sobrinho daquela senhora, irmã de sua mãe
que já havia morrido há alguns anos.
- Ok,
então... - Comprime a boca, depois passa a língua pelos lábios - Me avise por favor... do andamento ... – Levanta a manga do paletó bem passado e
olha o relógio, e sem completar o
pensamento estica o braço
oferecendo uma mão frouxa para o
médico apertar. Segue para a saída quando o outro o interrompe.
- Você não
quer conversar com ela antes? Ela está inconsciente, mas sabemos que os pacientes
sentem e ouvem quando os parentes
conversam com eles... - Vou deixar você a sós com ela. – O médico se afasta, fechando a porta atrás de si.
Ele respira
fundo, contrariado. A visão da senhora moribunda na cama naquele quarto sozinha não o toca. Pra ele, ela é uma desconhecida. Bernardo permanece aos pés
da cama e não sabe onde enfiar as
mãos. Nunca fora íntimo da tia, nem
mesmo quando a mãe era viva. Ela nunca se casara, e pouco frequentara a casa dos seus pais quando ele era
criança. A verdade é que não estava
sentindo nem um pouco a sua morte próxima. Estava até mesmo constrangido de
estar ali. Filho único, não tinha irmãos
pra dividir esse problema, e pra piorar, ela era a única irmã da mãe
já morta.
Uma brisa
fresca entra pela janela do quarto muito branco. Sara vê a filha correr e fechar a janela,
preocupando-se para que o vento não chegue até ela, piorando assim o
seu estado de saúde já tão delicado.
Sara tenta
se ajeitar na cama, mas não consegue. Suas costas doem muito, respira com
dificuldade. Vira o rosto e vê a preocupação da filha. Suspira e pensa que se
for hora de morrer, que seja. Viveu bastante, sua criança já é uma mulher, formada, tem um bom
emprego... Já fez sua obrigação de mãe. Volta a cabeça para o alto e suspira, sentindo uma leve dor
no peito. No seu olhar que congela, se
derrama a alegria de ter vivido uma existência feliz.
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