Friends are not FOOD

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sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

O garçom pródigo


A cidade de Antuérpia  é uma das maiores  da Bélgica e suas paisagens  são de  conto de fadas. O seu nome  vem de uma lenda folclórica  que  envolve um gigante chamado Antigoon que morava nas  redondezas do rio Escalda. Ele cobrava um preço  para quem quisesse  atravessar o rio e aqueles que não pagavam  tinham a   mão cortada e  atirada em suas águas. O gigante  foi morto por um jovem que fez o mesmo com ele.  Em holandês werpen quer dizer mão e wearpan quer dizer arremessar.
Lendas a parte, a cidade é linda, e tem uma atmosfera mágica. Foi isso que fez com que  Júlio  se instalasse ali quando em  visita  a Europa  há três anos atrás. Conseguiu um emprego de garçom no restaurante “Veranda” e trabalha  lá desde então.  Não tem saudades de casa, não deixou namorada ou amigos no Brasil. Parentes  tem muitos, mas não lhe dizem nada. Nunca gostou muito deles. A mãe ficou sozinha e escreve quase que diariamente pedindo que ele volte. “Voltar pra que?” ele pensa.
Filho único, a mãe nunca quis dizer o nome do seu pai. Tinha algumas desconfianças, ouvia comentários, mas nunca soube nada de concreto. Descobrira com uma tia quais os homens que tinham tido um namoro, ou um relacionamento com a mãe no passado e procurou ver neles semelhanças físicas, trejeitos.  Não percebeu nada, nunca um gesto, um olhar diferente por parte deles.  Na carteira de identidade  somente o nome da mãe. Sempre que a apresentava, colocava o dedo sobre a lacuna, na tentativa vã de não perceberem que ele não tinha um pai. Quando criança, em véspera do dia dos pais, quando se trabalhava em sala de aula na construção de trabalhos manuais para dar de presente, ia até a professora e pedia pra sair. Preferia ficar no pátio, sentado nos bancos do colégio ou ir embora mais cedo. Tinha nojo dessas demonstrações piegas de afeto.
A mãe insistia que ele retornasse, estava com muitas saudades. Fazia-se de vítima, dizendo que  ele era a única razão de sua vida, se não estavam juntos,não  tinha motivos pra viver. Isso  o irritava muito. Odiava quando ela começava com essas chantagens emocionais e com eles obtinha somente um efeito contrario: ao invés de fazê-lo  aproximar-se, afastava ainda mais. Odiava cobranças!
A porta do restaurante se abre e uma senhora de uns sessenta anos entra sozinha. Bem vestida, cabelos curtos e ondulados cuidadosamente penteados... Por um momento pensa ser a mãe, leva um susto. Logo se recupera e dirige-se a cliente polidamente como sua profissão exige, e com o cardápio na mão lhe indica uma mesa à janela. Ela senta de costas para as outras mesas e seu olhar se perde na paisagem da rua.
Num inglês perfeito ela pede uma taça de vinho tinto e seco. Ele se admira de como ela  lembra a sua mãe.  Nem anota o pedido.  Àquela hora ainda tem poucos clientes. Confia na sua memória. Vai até o bar e ele mesmo serve a taça e enche quase até a borda.  Leva o vinho  e ao  entregá-lo sente uma fisgada no peito: “Incrível como ela é parecida com a mãe!” –pensa. Por um momento imagina vê-la ali, em carne e osso na sua frente.
A senhora inclina a taça suavemente de modo a visualizar melhor a superfície na qual mergulha. Coloca o nariz junto à boca da taça e cheira vigorosamente, uma narina e depois a outra, sempre  de olhos fechados. Viaja com o aroma. Volta no tempo para as férias  das crianças quando esteve ali naquela  mesma cidade há muitos anos atrás  com os filhos pequenos e o marido. Ela e  Jean Carlo comemoravam  dez anos  de casamento, doze juntos. Foram os melhores anos de sua vida. Tempos que não voltam mais. Suspira e leva o copo a boca, sorvendo um grande gole.
Fecha os olhos, sente o sabor  da bebida, vê  o marido sorrindo  com um copo  de vinho tinto na mão, naquela mesa, naquele ambiente. Atrás dele o casal de filhos corre  brincando.  Chega a ouvir suas risadas. Brinda com ele e bebe mais um pouco. Sorri sozinha.  Vira-se para frente e percebe o garçom com os olhos fixados, perdidos nela. Ele lembra o seu filho que não vê há mais de dois anos, desde  o enterro do pai. A nora conseguiu o que queria. Inventou viagens nos últimos dois anos bem no dia das mães para que ele estivesse longe.  Até os netos não gostam dela.  Olha pra rua e bebe mais um gole. Precisa comer, não come desde  o café da manhã do hotel. Não sente fome, vai empurrar o jantar...
Faz um gesto para o garçom  ali perto e pede um prato qualquer. Algo nele, talvez o olhar, ou o cabelo, lembra o filho há uns dez anos atrás, quando ainda estava solteiro, quando ainda gostava dela... Ele indica o prato da casa, diz ser delicioso. Sem dissipar a tristeza atrás do olhar, ela aceita a sugestão e lhe entrega o cardápio, pedindo outro copo de vinho.
Nove horas da noite, agora que o sol vai começar a se esconder. O sol vermelho enfraquece com o vento. O que os filhos estarão fazendo a essa hora no Brasil? Marcelo nem sabe que  viajou, somente a Márcia.  
Aonde foi, qual foi o momento que tudo começou a dar errado? Quando foi que o jogo começou a se perder? Tão bom se tudo pudesse ter sido diferente, se pudesse voltar atrás. Ela podia ter evitado o câncer, a morte do marido? E os filhos, quando foi que os perdeu?
A filha é juíza de direito, solteira, e mora em outra cidade. Nunca se casou apesar de seus quase quarenta. Seu marido ficaria orgulhoso dela. Passou num concurso tão concorrido... Mas foi pra longe.  É um preço que se paga...  Mais um. A filha pediu que ela vendesse a casa e fosse com ela viver essa vida de andarilha. Uma média de três anos em cada cidade.  A filha diz que é só no inicio... Quem sabe depois então, talvez!
Mas como vender as lembranças, a única coisa que  a mantém viva? Não, não pode vender  o pouco que ainda resta daquele tempo em que foi feliz. Não pode recomeçar. O seu tempo já passou. O seu tempo de ser feliz já passou.
O garçom traz o prato pedido e fica ali esperando uma reação. Ela experimenta, e  ela  diz estar delicioso, agradece e ele sai, satisfeito. Não sabia que estava com tanta fome. Come tudo e pede outra taça de vinho antes de ir para o hotel.
O sol já se esconde, é quase dez horas.  Pede a conta, apesar de querer beber outra taça. O garçom logo traz a conta e fica ali por perto com  as mãos para trás olhando para ela. Deixa sobre o pratinho e o guardanapo o dinheiro e uma boa gorjeta para ele.  Sorri para ele que  se despede com a cabeça e procura a porta. Uma tonturinha leve a acompanha. Não é mais a mesma. Antes  três  taças de vinho não lhe fariam diferença...
Júlio vê a senhora se afastar e cada passo em direção da porta era  como se  alguém lhe esmagasse o peito. Foi com muito custo que conteve as lágrimas. “Mãe volta aqui, mãe!” Engole em seco a bola de  choro na garganta e ajeita a cadeira aonde  a mulher estava sentada. Decide naquele momento que vai voltar para o Brasil, vai voltar pra casa da mãe.  Ele a ama, ele é a sua família assim como ela é a dele. Nada importa, quem foi , quem é seu pai.  Ela é sua mãe e isso basta. Ajeita o guardanapo no braço, piscando rápido  para  a lágrima não descer e vai até  o balcão falar com o dono do restaurante  sobre a sua decisão.


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