A cidade de Antuérpia
é uma das maiores da Bélgica e
suas paisagens são de conto de fadas. O seu nome vem de uma lenda folclórica que
envolve um gigante chamado
Antigoon que morava nas redondezas
do rio Escalda. Ele cobrava um preço
para quem quisesse atravessar o
rio e aqueles que não pagavam tinham
a mão cortada e atirada em suas águas. O gigante foi morto por um jovem que fez o mesmo com
ele. Em holandês werpen quer dizer mão e wearpan
quer dizer arremessar.
Lendas a parte, a cidade é linda, e tem uma atmosfera mágica.
Foi isso que fez com que Júlio se instalasse ali quando em visita
a Europa há três anos atrás.
Conseguiu um emprego de garçom no restaurante “Veranda” e trabalha lá desde
então. Não tem saudades de casa, não
deixou namorada ou amigos no Brasil. Parentes
tem muitos, mas não lhe dizem nada. Nunca gostou muito deles. A mãe
ficou sozinha e escreve quase que diariamente pedindo que ele volte. “Voltar pra
que?” ele pensa.
Filho único, a mãe nunca quis dizer o nome do seu pai. Tinha
algumas desconfianças, ouvia comentários, mas nunca soube nada de concreto.
Descobrira com uma tia quais os homens que tinham tido um namoro, ou um
relacionamento com a mãe no passado e procurou ver neles semelhanças físicas,
trejeitos. Não percebeu nada, nunca um
gesto, um olhar diferente por parte deles. Na carteira de identidade somente o nome da mãe. Sempre que a
apresentava, colocava o dedo sobre a lacuna, na tentativa vã de não perceberem
que ele não tinha um pai. Quando criança, em véspera do dia dos pais, quando se
trabalhava em sala de aula na construção de trabalhos manuais para dar de
presente, ia até a professora e pedia pra sair. Preferia ficar no pátio,
sentado nos bancos do colégio ou ir embora mais cedo. Tinha nojo dessas
demonstrações piegas de afeto.
A mãe insistia que ele retornasse, estava com muitas
saudades. Fazia-se de vítima, dizendo que
ele era a única razão de sua vida, se não estavam juntos,não tinha motivos pra viver. Isso o irritava muito. Odiava quando ela começava
com essas chantagens emocionais e com eles obtinha somente um efeito contrario:
ao invés de fazê-lo aproximar-se,
afastava ainda mais. Odiava cobranças!
A porta do restaurante se abre e uma senhora de uns sessenta
anos entra sozinha. Bem vestida, cabelos curtos e ondulados cuidadosamente
penteados... Por um momento pensa ser a mãe, leva um susto. Logo se recupera e
dirige-se a cliente polidamente como sua profissão exige, e com o cardápio na
mão lhe indica uma mesa à janela. Ela senta de costas para as outras mesas e seu
olhar se perde na paisagem da rua.
Num inglês perfeito ela pede uma taça de vinho tinto e seco.
Ele se admira de como ela lembra a sua
mãe. Nem anota o pedido. Àquela hora ainda tem poucos clientes. Confia
na sua memória. Vai até o bar e ele mesmo serve a taça e enche quase até a
borda. Leva o vinho e ao entregá-lo sente uma fisgada no peito:
“Incrível como ela é parecida com a mãe!” –pensa. Por um momento imagina vê-la
ali, em carne e osso na sua frente.
A senhora inclina a taça suavemente de modo a visualizar
melhor a superfície na qual mergulha. Coloca o nariz junto à boca da taça e
cheira vigorosamente, uma narina e depois a outra, sempre de olhos fechados. Viaja com o aroma. Volta
no tempo para as férias das crianças quando
esteve ali naquela mesma cidade há
muitos anos atrás com os filhos pequenos
e o marido. Ela e Jean Carlo
comemoravam dez anos de casamento, doze juntos. Foram os melhores
anos de sua vida. Tempos que não voltam mais. Suspira e leva o copo a boca,
sorvendo um grande gole.
Fecha os olhos, sente o sabor
da bebida, vê o marido
sorrindo com um copo de vinho tinto na mão, naquela mesa, naquele
ambiente. Atrás dele o casal de filhos corre
brincando. Chega a ouvir suas
risadas. Brinda com ele e bebe mais um pouco. Sorri sozinha. Vira-se para frente e percebe o garçom com os
olhos fixados, perdidos nela. Ele lembra o seu filho que não vê há mais de dois
anos, desde o enterro do pai. A nora
conseguiu o que queria. Inventou viagens nos últimos dois anos bem no dia das
mães para que ele estivesse longe. Até
os netos não gostam dela. Olha pra rua e
bebe mais um gole. Precisa comer, não come desde o café da manhã do hotel. Não sente fome, vai
empurrar o jantar...
Faz um gesto para o garçom
ali perto e pede um prato qualquer. Algo nele, talvez o olhar, ou o
cabelo, lembra o filho há uns dez anos atrás, quando ainda estava solteiro,
quando ainda gostava dela... Ele indica o prato da casa, diz ser delicioso. Sem
dissipar a tristeza atrás do olhar, ela aceita a sugestão e lhe entrega o
cardápio, pedindo outro copo de vinho.
Nove horas da noite, agora que o sol vai começar a se
esconder. O sol vermelho enfraquece com o vento. O que os filhos estarão
fazendo a essa hora no Brasil? Marcelo nem sabe que viajou, somente a Márcia.
Aonde foi, qual foi o momento que tudo começou a dar errado?
Quando foi que o jogo começou a se perder? Tão bom se tudo pudesse ter sido diferente,
se pudesse voltar atrás. Ela podia ter evitado o câncer, a morte do marido? E
os filhos, quando foi que os perdeu?
A filha é juíza de direito, solteira, e mora em outra cidade.
Nunca se casou apesar de seus quase quarenta. Seu marido ficaria orgulhoso
dela. Passou num concurso tão concorrido... Mas foi pra longe. É um preço que se paga... Mais um. A filha pediu que ela vendesse a
casa e fosse com ela viver essa vida de andarilha. Uma média de três anos em
cada cidade. A filha diz que é só no inicio...
Quem sabe depois então, talvez!
Mas como vender as lembranças, a única coisa que a mantém viva? Não, não pode vender o pouco que ainda resta daquele tempo em que
foi feliz. Não pode recomeçar. O seu tempo já passou. O seu tempo de ser feliz
já passou.
O garçom traz o prato pedido e fica ali esperando uma reação.
Ela experimenta, e ela diz estar delicioso, agradece e ele sai,
satisfeito. Não sabia que estava com tanta fome. Come tudo e pede outra taça de
vinho antes de ir para o hotel.
O sol já se esconde, é quase dez horas. Pede a conta, apesar de querer beber outra
taça. O garçom logo traz a conta e fica ali por perto com as mãos para trás olhando para ela. Deixa
sobre o pratinho e o guardanapo o dinheiro e uma boa gorjeta para ele. Sorri para ele que se despede com a cabeça e procura a porta.
Uma tonturinha leve a acompanha. Não é mais a mesma. Antes três
taças de vinho não lhe fariam diferença...
Júlio vê a senhora se afastar e cada passo em direção da
porta era como se alguém lhe esmagasse o peito. Foi com muito
custo que conteve as lágrimas. “Mãe volta aqui, mãe!” Engole em seco a bola
de choro na garganta e ajeita a cadeira
aonde a mulher estava sentada. Decide
naquele momento que vai voltar para o Brasil, vai voltar pra casa da mãe. Ele a ama, ele é a sua família assim como ela
é a dele. Nada importa, quem foi , quem é seu pai. Ela é sua mãe e isso basta. Ajeita o
guardanapo no braço, piscando rápido
para a lágrima não descer e vai
até o balcão falar com o dono do
restaurante sobre a sua decisão.
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