Friends are not FOOD

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terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Com justa causa


O vômito saía em jatos sobre o carro vermelho estacionado no pátio. O reflexo  da  lua fazia o líquido viscoso brilhar ainda mais ... Sentia se observada. Sabia que  a patroa  espiava de algum lugar, seu olhar queimava às suas costas. Ouviu o barulho da  porta de correr. Precisava da sua cama. Queria que o chão se firmasse e o mundo parasse de rodar. Segurou-se no carro para não cair e vomitou  mais um pouco sobre o capô. A pulseira de caveiras arranhou a pintura no lado da porta do motorista. O barulho do metal arrastando na superfície do veiculo  arrepiou seus dentes.

-  Me adianta  um dinheiro?  Tua mãe saiu e não me deixou nada..
A moça, filha mais  velha  da patroa, sentada  no sofá da sala com um livro aberto no colo, levantou os óculos de grau e disse:
- Mas não faz um mês que tu trabalha aqui, faz? – Ela franze a testa
A empregada  torce a boca, sacode  a cabeça  de uma lado pra outro e levanta os dois  braços  sem acreditar:
- To pedindo um adiantamento, né!  Vou no baile e preciso de algum...
- Eu não tenho muito... De quanto tu precisa? – Puxou a bolsa e abriu a carteira.
- Ah tem  que ser  uns  cinquentinha...senão não dá  nem pra saída. – A estudante  abaixou os óculos e alcançou a cédula de cinqüenta reais  pra  empregada  que saiu se sacudindo. Dançava  antes mesmo de chegar à festa.


Sempre  acabava o serviço antes das seis e  saía  para caminhar até a noite. Sem avisar, deixava  a casa e saía sem rumo.   Adorava fumar e perambular  na companhia das luzes dos  postes e da ponta do cigarro que acendia a cada tragada. Caminhava com as pernas entreabertas, as calças caídas. Queria ter  nascido homem.
Detestava aquele serviço. Odiara também os anteriores. Fora pra escola obrigada pela mãe. Terminara o Ensino Fundamental há poucos anos com muito custo e atraso. O que poderia fazer para  ganhar dinheiro ?  Nada, nada além  de  limpar a casa  dos outros que  estudaram mais ou tiveram a sorte de nascerem  bem.


Ouviu  ruídos  dentro da  casa, miados de  gatos, mas não conseguiu prestar muita atenção.Era tão longe, um outro mundo ofuscado  pela cerveja.  A cabeça pesou e ela precisou vomitar mais um pouco.
A porta envidraçada  de correr se abriu  e se fechou novamente. Tentou se equilibrar e chegar na área. Caiu sobre um vaso de folhagens que a patroa insistia em  deixar ali e arranhou a mão no piso.
Não soube quantos minutos  passou . Caída, vomitando. A porta  arrastou. Levantou e conseguiu  chegar  na área e engatinhar até o seu quartinho. O banheiro era  a próxima porta mas não tinha  forças de ir até  lá e tirar as roupas, quanto mais  tomar um banho.
Deixou-se  ficar na cama, a porta entreaberta. Teve um acesso de riso ao perceber que os gatos cujo “quarto” era ao lado do seu, haviam sido retirados. Imaginou que a patroa tivera medo  que ela caísse sobre eles e  os  transportara para  outro lugar mais seguro, quem sabe a garagem... A risada ecoou nos fundos da casa.



Na cozinha, um barulho de torneira aberta e louças. O barulho do fogão elétrico cutucava  o seu cérebro,.. Era a patroa que sempre acordava com as  galinhas. Olhou no celular, sete horas.  A cabeça latejava. Pegou o travesseiro e  cobriu a cabeça tentando não pensar  no cheiro de café que invadiu o ar.
Acordou mais tarde com a boca seca, a dor pulsava nas têmporas.  O celular marcava 10h30min. A essa hora a patroa  estava dando aulas de inglês na sala do outro lado da residência. Sentou-se na cama devagar. A cabeça pesava cem quilos. O quarto rodou e deitou  outra vez  sem dormir.
Mandou uma mensagem pro celular da patroa:
Preciso falar com você. Me ligue  ou mande uma mensagem.
Menos de cinco minutos  se passaram e viu o rosto da patroa na porta do quartinho:
- Tu estás mandando mensagem daqui? – a patroa com olhos bem abertos sacode a cabeça de um lado a outro sem acreditar.
- Me traz um comprimido pra dor de cabeça?-
Um minuto depois  viu  voar em cima  da cama um envelope laranja com dois  analgésicos.
Sentindo-se melhor  tomou um banho e saiu com a mochila  nas costas. Fim de semana, a idéia era ir pra casa da mãe na  cidade vizinha.
Na  rodoviária sentiu-se mal. A cabeça doía demais. Nem lembrava há  quantas horas  estava sem se alimentar. Desde  o almoço do dia  anterior sem comer.  No estômago, só cerveja e os dois comprimidos com água  pela manhã.
Mandou um  “Me liga”  pra patroa que retornou na mesma hora.
- Ai, to aqui rodando, a minha cabeça não pára de doer e eu quero ir pra casa da minha mãe, mas não posso entrar no ônibus vomitando...
- Venha para  cá,  tome um banho e  durma um pouco. Pegue  o ônibus mais tarde....
-Eu não vou voltar pra aí.  Eu.... - Ela a interrompe:
- Venha para  cá,  tome um banho e  durma um pouco. Pegue  o ônibus mais tarde....
A  patroa desligou.
Deixou a rodoviária  chorando muito  sob os olhares de outras  pessoas esperando ônibus. Vagou pela cidade, sem forças  sentou-se no terreno baldio ao lado de uma fruteira  e ali ficou. Adormeceu na grama. Acordou horas depois com o barulho das vozes de quem passava na calçada.
Tapeou a  roupa pra tirar os ciscos e  caminhou   até uma  parada de ônibus. Pegou o  primeiro  que  veio e foi pra casa da mãe.
No outro dia, domingo à tardinha, ligou  pra patroa:
- Oi, sou eu...  Tu vai dar aula amanha cedo? – sem deixar a patroa  responder continuou -  Se for,  eu vou mais cedo pra limpar a  tua  sala...
A voz ríspida do outro lado do  aparelho diz:
- Não precisa  mais vir pra trabalhar. Venha apenas para pegar tuas  coisas  e receber  os teus direitos.
- O que? O que houve? O que foi que eu fiz?
Do outro lado um suspiro e a voz  ainda mais seca:
- Se tu não sabes o que tu fizeste,  eu é que não vou te dizer.
Larga o celular  sobre a mesa e com as mãos  na cintura se vira  para a mãe e diz:

- Mai Godi!  Que gente mais estressada! Tá louco, hein?

sábado, 20 de dezembro de 2014

Leite materno


No quarto todo branco, persianas entreabertas deixam o ar da noite entrar. O tecido estampado da cortina dança leve, sem música. Os cabelos pretos espalhados, afundados no travesseiro macio, contrastam com o alvo da fronha com poucos bordados. Num sono profundo, vez ou outra, as pálpebras mexem rápido sem sonhar em acordar. Um ligeiro desconforto nos seios. Os bicos intumescem e um queimor ardido corre por baixo da pele desde o mamilo até perto do pescoço. O alimento branco começa a pingar lento e fraco, mas logo um fio fino começa sem parar. E o leite corre em pequenos jatos.
Sara levanta e senta rápido, pisca algumas vezes. Leva a mão aos seios que pingam, endurecidos. Com a camisola molhada corre ao quartinho que fica ao lado e olha a criança num pijaminha rosa que resmunga ainda dormindo. O cabelinho espetado e preto, os punhos fechados. Levanta o bebê com cuidado e a leva para o quarto onde dorme. Deita de lado e ajeita a menina pra mamar. O bebê suga com vontade, fazendo barulhos. O leite, misturado com saliva, escorre pelo canto da boquinha bem desenhada. A menina sorri enquanto mama e aperta o dedo indicador da mãe, que não perde um detalhe. Sara quer guardar para sempre esses momentos que se perdem tão rápido nas memórias do tempo.
A menina dorme mamando. Sara vira cuidadosamente o bebê para que ela fique de lado. Assim deitada, se a menina regurgitar não corre o risco de se afogar. Fica olhando e sorrindo para  a filhinha  por mais alguns minutos, seus olhos transbordam  carinho.
- Você não vai dormir? – O marido pisca várias vezes e coça os olhos. - Vai ficar olhando pra ela até quando? – Nas suas bochechas, duas covinhas aparecem quando sorri.
- Ela não é linda? – Sara pergunta sem tirar os olhos da menina.
- Sim, - as covinhas ficam mais fundas - é parecida comigo! – Ele puxa  o cabelo dela bem fraquinho e a beija. – Vamos dormir, amanhã tenho que acordar cedo. – Ele se vira para o outro lado e  Sara olha para a menina mais um pouco. Não vai levá-la  para  o  quartinho, daqui a pouco ela  precisa mamar novamente.
As folhas das árvores dançam, os galhos mexem leves. Não se pode afirmar com certeza quem é o responsável pelo vai e vem das folhas,  se o vento ou  a mão zombeteira do tempo. No lado de fora do hospital, a vegetação frondosa traz alento àquele lugar de tantas dores. Uma pequena gruta com uma estátua de uma santa de  pedra envolta em folhagens muito verdes, uma fonte artificial onde a água corre sem parar, completam a decoração do jardim.

Dr. Álvaro conversa com Bernardo sobre o estado de sua tia:
- O estado da D. Sara  é irreversível. Pneumonia nesta idade avançada se torna uma doença  bem grave. – O médico olha bem nos olhos do único parente da paciente que apareceu por ali desde que ela foi internada há alguns dias, vinda do asilo municipal. – Talvez ela dure mais uma semana,  quem sabe menos... – Os olhos dele não denunciavam pesar. Era apenas um sobrinho daquela senhora, irmã de sua mãe  que já havia morrido há alguns anos.
- Ok, então... - Comprime a boca, depois passa a língua pelos lábios -  Me avise por favor... do andamento ...  – Levanta a manga do paletó bem passado e olha o relógio, e  sem completar o pensamento estica o braço  oferecendo  uma mão frouxa para o médico apertar. Segue para a saída quando o outro o interrompe.
- Você não quer conversar com ela antes? Ela está inconsciente, mas sabemos que  os pacientes  sentem  e ouvem quando os parentes conversam com eles... - Vou deixar você a sós com ela.  – O médico se afasta, fechando a porta  atrás de si.
Ele respira fundo, contrariado. A visão da senhora moribunda na cama  naquele quarto sozinha não  o toca. Pra ele, ela é  uma desconhecida. Bernardo permanece aos pés da cama e não sabe onde  enfiar as mãos.  Nunca fora íntimo da tia, nem mesmo quando a mãe era viva. Ela nunca se casara, e pouco frequentara  a casa dos seus pais quando ele era criança.  A verdade é que não estava sentindo nem um pouco a sua morte próxima. Estava até mesmo constrangido de estar ali. Filho único, não tinha irmãos  pra dividir  esse problema,  e pra piorar, ela era a única irmã  da mãe  já morta.
Uma brisa fresca entra pela janela do quarto muito branco.  Sara vê a filha correr e fechar a janela, preocupando-se  para que  o vento não chegue até ela, piorando assim o seu estado de saúde  já tão  delicado.

Sara tenta se ajeitar na cama, mas não consegue. Suas costas doem muito, respira com dificuldade. Vira o rosto e vê a preocupação da filha. Suspira e pensa que se for hora de morrer, que seja. Viveu bastante, sua criança  já é uma mulher, formada, tem um bom emprego... Já fez sua obrigação de mãe. Volta a cabeça  para o alto e suspira, sentindo uma leve dor no peito. No seu olhar que congela,  se derrama a alegria de ter vivido uma existência feliz. 

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

O garçom pródigo


A cidade de Antuérpia  é uma das maiores  da Bélgica e suas paisagens  são de  conto de fadas. O seu nome  vem de uma lenda folclórica  que  envolve um gigante chamado Antigoon que morava nas  redondezas do rio Escalda. Ele cobrava um preço  para quem quisesse  atravessar o rio e aqueles que não pagavam  tinham a   mão cortada e  atirada em suas águas. O gigante  foi morto por um jovem que fez o mesmo com ele.  Em holandês werpen quer dizer mão e wearpan quer dizer arremessar.
Lendas a parte, a cidade é linda, e tem uma atmosfera mágica. Foi isso que fez com que  Júlio  se instalasse ali quando em  visita  a Europa  há três anos atrás. Conseguiu um emprego de garçom no restaurante “Veranda” e trabalha  lá desde então.  Não tem saudades de casa, não deixou namorada ou amigos no Brasil. Parentes  tem muitos, mas não lhe dizem nada. Nunca gostou muito deles. A mãe ficou sozinha e escreve quase que diariamente pedindo que ele volte. “Voltar pra que?” ele pensa.
Filho único, a mãe nunca quis dizer o nome do seu pai. Tinha algumas desconfianças, ouvia comentários, mas nunca soube nada de concreto. Descobrira com uma tia quais os homens que tinham tido um namoro, ou um relacionamento com a mãe no passado e procurou ver neles semelhanças físicas, trejeitos.  Não percebeu nada, nunca um gesto, um olhar diferente por parte deles.  Na carteira de identidade  somente o nome da mãe. Sempre que a apresentava, colocava o dedo sobre a lacuna, na tentativa vã de não perceberem que ele não tinha um pai. Quando criança, em véspera do dia dos pais, quando se trabalhava em sala de aula na construção de trabalhos manuais para dar de presente, ia até a professora e pedia pra sair. Preferia ficar no pátio, sentado nos bancos do colégio ou ir embora mais cedo. Tinha nojo dessas demonstrações piegas de afeto.
A mãe insistia que ele retornasse, estava com muitas saudades. Fazia-se de vítima, dizendo que  ele era a única razão de sua vida, se não estavam juntos,não  tinha motivos pra viver. Isso  o irritava muito. Odiava quando ela começava com essas chantagens emocionais e com eles obtinha somente um efeito contrario: ao invés de fazê-lo  aproximar-se, afastava ainda mais. Odiava cobranças!
A porta do restaurante se abre e uma senhora de uns sessenta anos entra sozinha. Bem vestida, cabelos curtos e ondulados cuidadosamente penteados... Por um momento pensa ser a mãe, leva um susto. Logo se recupera e dirige-se a cliente polidamente como sua profissão exige, e com o cardápio na mão lhe indica uma mesa à janela. Ela senta de costas para as outras mesas e seu olhar se perde na paisagem da rua.
Num inglês perfeito ela pede uma taça de vinho tinto e seco. Ele se admira de como ela  lembra a sua mãe.  Nem anota o pedido.  Àquela hora ainda tem poucos clientes. Confia na sua memória. Vai até o bar e ele mesmo serve a taça e enche quase até a borda.  Leva o vinho  e ao  entregá-lo sente uma fisgada no peito: “Incrível como ela é parecida com a mãe!” –pensa. Por um momento imagina vê-la ali, em carne e osso na sua frente.
A senhora inclina a taça suavemente de modo a visualizar melhor a superfície na qual mergulha. Coloca o nariz junto à boca da taça e cheira vigorosamente, uma narina e depois a outra, sempre  de olhos fechados. Viaja com o aroma. Volta no tempo para as férias  das crianças quando esteve ali naquela  mesma cidade há muitos anos atrás  com os filhos pequenos e o marido. Ela e  Jean Carlo comemoravam  dez anos  de casamento, doze juntos. Foram os melhores anos de sua vida. Tempos que não voltam mais. Suspira e leva o copo a boca, sorvendo um grande gole.
Fecha os olhos, sente o sabor  da bebida, vê  o marido sorrindo  com um copo  de vinho tinto na mão, naquela mesa, naquele ambiente. Atrás dele o casal de filhos corre  brincando.  Chega a ouvir suas risadas. Brinda com ele e bebe mais um pouco. Sorri sozinha.  Vira-se para frente e percebe o garçom com os olhos fixados, perdidos nela. Ele lembra o seu filho que não vê há mais de dois anos, desde  o enterro do pai. A nora conseguiu o que queria. Inventou viagens nos últimos dois anos bem no dia das mães para que ele estivesse longe.  Até os netos não gostam dela.  Olha pra rua e bebe mais um gole. Precisa comer, não come desde  o café da manhã do hotel. Não sente fome, vai empurrar o jantar...
Faz um gesto para o garçom  ali perto e pede um prato qualquer. Algo nele, talvez o olhar, ou o cabelo, lembra o filho há uns dez anos atrás, quando ainda estava solteiro, quando ainda gostava dela... Ele indica o prato da casa, diz ser delicioso. Sem dissipar a tristeza atrás do olhar, ela aceita a sugestão e lhe entrega o cardápio, pedindo outro copo de vinho.
Nove horas da noite, agora que o sol vai começar a se esconder. O sol vermelho enfraquece com o vento. O que os filhos estarão fazendo a essa hora no Brasil? Marcelo nem sabe que  viajou, somente a Márcia.  
Aonde foi, qual foi o momento que tudo começou a dar errado? Quando foi que o jogo começou a se perder? Tão bom se tudo pudesse ter sido diferente, se pudesse voltar atrás. Ela podia ter evitado o câncer, a morte do marido? E os filhos, quando foi que os perdeu?
A filha é juíza de direito, solteira, e mora em outra cidade. Nunca se casou apesar de seus quase quarenta. Seu marido ficaria orgulhoso dela. Passou num concurso tão concorrido... Mas foi pra longe.  É um preço que se paga...  Mais um. A filha pediu que ela vendesse a casa e fosse com ela viver essa vida de andarilha. Uma média de três anos em cada cidade.  A filha diz que é só no inicio... Quem sabe depois então, talvez!
Mas como vender as lembranças, a única coisa que  a mantém viva? Não, não pode vender  o pouco que ainda resta daquele tempo em que foi feliz. Não pode recomeçar. O seu tempo já passou. O seu tempo de ser feliz já passou.
O garçom traz o prato pedido e fica ali esperando uma reação. Ela experimenta, e  ela  diz estar delicioso, agradece e ele sai, satisfeito. Não sabia que estava com tanta fome. Come tudo e pede outra taça de vinho antes de ir para o hotel.
O sol já se esconde, é quase dez horas.  Pede a conta, apesar de querer beber outra taça. O garçom logo traz a conta e fica ali por perto com  as mãos para trás olhando para ela. Deixa sobre o pratinho e o guardanapo o dinheiro e uma boa gorjeta para ele.  Sorri para ele que  se despede com a cabeça e procura a porta. Uma tonturinha leve a acompanha. Não é mais a mesma. Antes  três  taças de vinho não lhe fariam diferença...
Júlio vê a senhora se afastar e cada passo em direção da porta era  como se  alguém lhe esmagasse o peito. Foi com muito custo que conteve as lágrimas. “Mãe volta aqui, mãe!” Engole em seco a bola de  choro na garganta e ajeita a cadeira aonde  a mulher estava sentada. Decide naquele momento que vai voltar para o Brasil, vai voltar pra casa da mãe.  Ele a ama, ele é a sua família assim como ela é a dele. Nada importa, quem foi , quem é seu pai.  Ela é sua mãe e isso basta. Ajeita o guardanapo no braço, piscando rápido  para  a lágrima não descer e vai até  o balcão falar com o dono do restaurante  sobre a sua decisão.


quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Casa na praia


Os três carros chegaram juntos. Nenhum dos motoristas queria ser o primeiro a descer, abrir o portão e entrar. Os seus olhares entristecidos se procuraram enquanto estacionavam  do lado de fora do pátio amarelado pelas  alamandas floridas. Ora viravam para o alto, ora engoliam em seco e olhavam para a casa... Era a primeira vez que os irmãos iam à praia desde a morte de sua mãe.
Fazia pouco mais de um mês que Dona Docinho havia morrido. Sempre muito amada e querida por todos que a conheciam, era chamada assim, por ser, como a alcunha já diz, um doce de pessoa. 
Nascera e se criara na praia, uma das filhas mais velhas de uma grande família de oito irmãos. Vivera ali até os dezoito anos, quando se casou e fora morar no interior de Vinha  D’Alho, distante mais de 50 quilômetros. As visitas ao litoral se tornaram escassas à medida que os filhos foram nascendo e isso a deixava triste. Deixara a família para trás para seguir o marido. O nascimento dos cinco filhos foi tomando o lugar da saudade. Muitos anos depois, quando os filhos se tornaram homens e ela  enviuvou, pôde  fazer o que realmente queria. Todo o mês de dezembro arrumava suas coisas, levava a  empregada , a gata Izzy, sua melhor companhia, e  mudava de endereço por  três meses, só voltando para Vinha D’alho depois do feriado de Páscoa. Adorava praia e estar cercada pelos familiares. Quando os filhos apareciam  por lá a alegria se completava. Pra ela, felicidade era estar ao lado dos irmãos, dos filhos, jogar pife com eles e  tomar espumante gelado.
Naquele dia, o filho mais novo, Leandro, estava com as chaves. Com uma fisgada no peito abriu o cadeado do portão sempre olhando para a casa. Não conseguiria descrever sua dor, nunca fora bom com as palavras.
Entraram  pela frente e  abriram as janelas e portas com a respiração e a voz presas. Uma nesga de sol, também de luto, entrou triste e silenciosa em todos os cômodos. Começaram a limpar, tirar o pó. A casa estava fechada desde o último verão e  isso os absorveu. Todos os cômodos, todos os móveis falavam dela, falavam nela... O cheiro, o jeito, tudo.
A suíte da mãe ficou vazia por respeito, por consideração... Ninguém quis ocupar seu quarto, intacto desde seu desaparecimento há pouco mais de um mês.
Sentados na área da frente, ninguém falava nada. As mulheres choravam baixinho fazendo uma coisa  ou outra.  Leandro manteve a bola  na garganta. Não chorava, mas não sentia menos dor, menos falta, menos vazio.
Naquele mesmo dia, tudo voltou ao normal, na medida do possível. Fizeram  as refeições, lavaram as louças, assistiram TV, foram tomar banho de mar, dormiram... Mas o vazio estava ali,  fazendo todas as atividades com eles.
Daquele  dia em diante, tudo seria assim: chegariam  e  se deparariam  com uma casa fechada e toda vez teriam que fazer tudo, abrir as lembranças, varrer as lágrimas  e tirar o pó da saudade. Tudo seria tão diferente de antes, quando o carro nem bem chegava à  calçada e  a mãe, já na porta  escancarada da garagem, com seu olhar azul  iluminado pela alegria de sua  chegada, já dava ordens pra empregada arrumar os quartos com lençóis perfumados, recém lavados  para que ficassem bem confortáveis.
Despedir-se da  casa, naquele final de semana, não foi mais fácil. Fecharam as janelas, as portas e passaram cadeado no portão. O veraneio estava recém começando e teriam que conviver com a sua ausência se quisessem aproveitar a praia.
Na sexta feira seguinte o cadeado não estava no portão. A porta da frente estava destrancada. A parte dos fundos estava aberta, as janelas escancaradas. No ar um cheiro de  vida. O vento  do litoral entrava e fazia dançar as cortinas. Num canto da área dos fundos um banheiro de gatos com areia recém colocada e dois potes, um com água e outro com ração fresca. Da porta da cozinha surgiu a gata Izzy com a cauda erguida, denunciando alegria em  vê-los.
Brincaram com a gata sem parar. Ora ela interagia com um, ora com outro. Cheirosa, recém saída do banho e pelo bem brilhoso, dava tapas em suas pernas quando passavam por ela sem alisá-la.
Guardaram seus pertences nos quartos e sentaram na sala. Tudo estava limpo e organizado. As duas geladeiras cheias de cerveja gelada.  Um cheirinho de comida caseira e temperada fumegava  no fogão.  A felicidade havia retornado.
Juntaram as cadeiras, o guarda sol colorido, a caixa com gelo e caipira e foram aproveitar a praia.   O sol estava radiante, o mar quase sem ondas e a água esverdeada. Contaram piadas, jogaram frescobol, caminharam por dez guaritas e voltaram.
O almoço estava na mesa  fartamente posta. Duas variedades de carne, muitos acompanhamentos  e saladas. Comeram enquanto conversavam e brincavam contentes por estarem ali num dia quente e ensolarado. A sobremesa caseira agradou a todos.
Domingo à tardinha retornaram para suas  casas em Vinha D’Alho. Não havia neles  aquela   dor da saudade.
Na sexta feira seguinte a tardinha , uma névoa espessa, estranha aquela hora, tomava conta do litoral. Leandro foi o primeiro a chegar com sua mulher e filhos. Os outros irmãos chegariam mais tarde, depois das seis. Izzy, faceira veio se roçar em suas pernas, miando contente  Acocorou-se e acariciou o pelo macio.
Leandro, apaixonado pelo mar como a mãe, foi até a praia, mesmo sem sol, caminhou pela areia e deixou as águas frias molharem seus pés. Respirou o ar salgado, sentou-se e pensou na mãe. Pela primeira vez, desde que ela morrera, deixou-se tomar pela emoção e chorou. Os soluços sacudiam seus ombros e as lágrimas corriam mais salgadas que o mar.
Depois de algum tempo decidiu voltar. De longe viu os carros dos irmãos estacionados dentro do pátio. Ouviu algazarra e risadas e quando se aproximou viu a mãe entre eles. O irmão mais velho chamou contente fazendo sinais com as mãos:

- Vem, logo. Estávamos te esperando pra abrir a champanhe.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Dois amigos

Marcaram o encontro para o meio dia. Depois de um ano, os dois amigos se reuniriam outra vez. Bernardo, ansioso em rever aquele que desde sua tenra infância tinha sido o seu maior companheiro. Olhou-se no espelho, arrumou a gola da camisa, mirou bem um lado do rosto, depois o outro. Tudo certo. Observou o relógio. Faltava pouco para as 11h30min. Com pouco dinheiro, decidiu que iria caminhando até o restaurante onde se encontrariam.
Ao chegar, escolheu uma mesa que lhe possibilitaria ver a rua e quem passasse por ela. Veio o garçom, agradeceu com a desculpa que esperava uma pessoa, mas na verdade ansiava por um copo de chope.
Escorado para trás, na cadeira pensou em sua vida. Não possuía a malandragem quase que imposta pela sociedade atual. Não via os outros como concorrentes. Mas sim como quem precisasse de ajuda para conseguir seus objetivos, assim como ele. Não esperava das pessoas o mal que ele não era capaz de fazer. Talvez esse fosse seu maior defeito.
Suspirou e virou o rosto no momento em que um enorme SUV preta estacionava tirando-lhe a vista da rua. Transferiu sua concentração para o cardápio a la carte e os valores, achando-os um pouco caros. Neste momento uma sombra pairou em frente à janela e o corredor.
- Me dá cá um abraço!

Bernardo levantou num susto e viu o amigo muito bem vestido num terno de linho bege, com uma camisa marrom com alguns botões abertos. A Europa tinha lhe feito bem.
Assim que sentou, Eduardo ergueu o braço e fez sinal para o garçom. Atirou-se para trás e olhou para o amigo:
- Parece que foi ontem! Como foi bom nosso tempo de escola! Lembro das provas,  quando eu colava  de você... – Olhou para as roupas do ex colega e seu olhar parou nos punhos puídos da camisa.
Um telefone tocou. Eduardo tirou do bolso um I-Phone último modelo. Conversou pro algum tempo, às vezes em inglês, dando altas risadas. Fora isso, o silencio gritava entre os dois.
Não precisou muito para se darem conta que aquele ano que passaram longe havia separando-os de uma maneira irreversível. Comeram o almoço que Eduardo se ofereceu pra pagar, mas Bernardo recusou.
Na porta do restaurante se despediram com um aperto frouxo de mão sem trocar telefones e sem olhar para trás. 

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

O Ninho do Quero Quero



Um quero quero,  com sua linda plumagem negra orlada de branco na testa e na garganta e uma larga área marrom no peito, corria no  terreno baldio de um lado para outro enquanto soltava gritos e batia as asas freneticamente para defender seu ninho. Esse, com três pequenos ovos esverdeados e casca salpicada de preto, ficava quase descoberto sob uma pequena depressão no solo ali à vista de qualquer um que passasse pela calçada. Há poucos metros  o companheiro também ajudava a proteger o ninho dando vôos  rasantes nos intrusos.
 Um cão que atravessava o campinho foi ameaçado. Os dois quero queros voaram quase encostando suas pequenas garras no cachorro ao mesmo tempo em que gritavam alto.   Eles não conseguiam entender porque pessoas e animais passavam  tão perto de seu ninho se tinha tanto espaço por ali.
Não havia casas muito próximas do ninho. Defronte ao campinho havia uma casa grande aonde moravam um casal, duas meninas, muitos gatos e alguns cães que ficavam sempre  dentro do pátio. Ao lado, na outra esquina uma casa amarela aonde vivia um casal de mais idade que criava passarinhos. Os quero queros consideravam aquele um bom local para  seus ovos. No entanto, naquele bairro tinha uma escola, com alunos de todos os  tamanhos  manhã e tarde  e o quero quero percebeu que em nos horários de entrada e saída, eles teriam que ficar mais alertas.
Uma chuva grossa tocada por um forte vento começou. Os dois quero queros permaneceram no campinho um protegendo os ovos e o outro há uns 3 metros. A chuva continuou sem parar por horas e horas e a água começou a se acumular formando poças  sobre a grama. Como os pingos engrossaram muito e não havia mais um local seco , uma das aves voou e o outro ficou sobre o ninho. O que ficou percebeu que na casa em frente, o casal se preocupava com o  seu destino, indo na janela minuto a minuto e observar  a chuva e o acúmulo de água.
Quando a chuva cessou a outra ave retornou e as duas juntas bateram as asas soltando gritos.  O ninho estava a salvo. Uma nesga de sol surgiu atrás das nuvens  grossas e arroxeadas.
Naquele mesmo dia,   na saída da escola, alguns alunos  munidos de garrafas pet cheias de água fizeram uma guerra  arremessando as uns contra os outros na maior algazarra. O contato da garrafa cheia   com o chão surtia o efeito de um tiro. As duas aves voaram baixo e gritavam no meio deles batendo  freneticamente as asas. Os alunos deixaram o campinho correndo com as mãos na cabeça  rindo muito. Um deles, porém alcançou o ninho e pegou um dos ovos arremessando –o contra um outro menino.
Tão rápido quanto vieram, os meninos  se dispersaram. O casal de quero queros voltou para o ninho e como ainda restassem dois  ovos, continuaram a cuidá-lo.
Dias passaram e nada de diferente  tinha acontecido. As duas aves, ali, revezando-se  no ninho cuidavam dos  ovos restantes.
Já era tardinha, quase noite quando um motoqueiro fazendo  um barulho ensurdecedor passou por ali. Ele acelerava rápido e empinava a moto. Ia e voltava passando pertinho do ninho perto do qual os quero queros alvoroçados gritavam e voavam baixinho.
O morador da casa em frente correu e disse:
- Hei, Olha o ninho dos quero queros!  Saia daí! Isso não é lugar pra andar de moto!!
O rapaz com o rosto escondido pelo capacete saiu  do campinho  tão rápido quanto entrou, logo ganhando a rua e desaparecendo. O homem entrou em casa e disse a mulher:
-Quando você ouvir os quero queros gritando, vá ali e veja o que está acontecendo. Sempre é alguma coisa.
Ela secou as mãos num pano de pratos e virou-se para o marido: - Eu já xinguei umas crianças  ontem, mas  tenho medo de quanto mais  falar, mais eles teimarem...
- Pois é... Logo os ovos descascam e os filhotinhos já estarão  por ai. Precisamos cuidar  os gatos, então  ...
- Vou cuidar mais! Pode deixar. Por enquanto  cuidemos  dos ovos. -   sorriu - Ficarei atenta aos  gritos deles. Eles gritam sempre que alguém se aproxima do ninho...
No dia seguinte alguém deixou o portão da casa aberto e dois cães ganharam a rua. Correram pra  estrada, fizeram xixi na árvore na esquina e dirigiram-se ao campinho se aproximando do ninho. Os quero queros revoaram baixo e gritaram em vão. Um dos cães encontrou o ninho, cheirou os ovos e começou a esfregar-se, a rolar-se sobre eles. As duas aves ainda tentaram bicar o cachorro e assustá-lo com seus gritos estridentes, mas  de nada adiantou. Os ovos  foram esmagados, perdidos.
A mulher no portão  ralhou com os  cães chamando-os. Os dois começaram a correr  em direção a casa com o rabo entre as pernas.  No momento em que ela fechou o portão atrás  dos cães, percebeu  que no pelo de um deles  havia  restos de  gemas,claras e  cascas quebradas.

Ela  ainda teve tempo de olhar para o campinho e ver os dois quero queros alçando vôo em desistência. Seus gritos  foram diminuindo a medida que se distanciavam no horizonte em busca de um  lugar aonde pudessem pôr outros ovos em segurança.

sábado, 13 de dezembro de 2014

O Jardim da Vida


Pedro e Leonel  vagavam pela terra  morta quando avistaram algo de cor   rosa que destoava em toda  aquele cinzento de destruição. Aproximaram se e a cada passo a esperança pulsava mais forte dentro deles. Os dois estupefatos constataram que uma morada, um Oasis, no fundo de uma rua permanecia intacta: A grama verde, gatos e cães brincavam pelo pátio, pássaros de todas as cores e penugens, gorjeavam  nas árvores. O chafariz na frente da casa era  cercado de folhagens. Uma mulher de mármore com curvas perfeitas tinha o rosto virado para o céu  e  num banho ininterrupto, ficava ali, apontando para cima. Um musgo verde tornava o seu cabelo ainda mais volumoso e espesso. Um limo mais claro dava a estatua uma transparência etérea. Mesmo de longe via-se o esgar de quem  esbanjava água enquanto a sede imperava lá fora
Buganvílias cor de rosa entrelaçavam-se com a grade grossa de ferro que separava aquela residência da rua. Seus espinhos se tornaram verdadeiros escudos impossibilitando a entrada de qualquer um.
Tentaram entrar, não conseguiam ultrapassar a grade sem conseguir aonde se apoiar. O portão emperrado, nem cinco homens conseguiriam move-lo.  Chamaram, gritaram por socorro. O silencio sepulcral, era cortado pelos clamores dos dois que caminhavam de um lado a outro da grade tentando entrar.  Não havia uma alma viva ali. Permaneceram até o  anoitecer na esperança de aparecer alguém e abrir aquela fortaleza,  quando  uma  mulher  surgiu e começou a regar as plantas. Ela ficou minutos aguando e conversando com   cada folhagem, com cada planta. Despedia-se ao parar e cumprimentava a próxima ao começar. De longe viu-se escorrer o liquido que o chão bebeu. Sujos, sedentos, os dois homens ansiavam por água mais ainda que a terra seca. Cabelos compridos, desgrenhados a pele escura curtida pelo sol, vestidos em farrapos. Precisavam beber  e  por alguns goles   seriam capazes de tudo.
Pedro e Leonel  tinham mulher que esperavam por auxilio. Não teria como chegar  em casa  mais uma vez com as  mãos vazias. O único filho de Leonel estava desidratado. O leite de Ester, há dias sem alimentação, secara e temiam pela sua vida.
 A jardineira não os escutava por mais alto que gritassem. Seu cabelo era preso e usava um vestido claro e solto no corpo. Tentaram chamar a atenção dos cães, atirando pedrinhas e pedaços de galhos que nunca atravessavam a grade ou alcançavam o chão. Ninguém os percebia.
Leonel caminhava de um lado para o outro procurando uma abertura. Como nada encontrou, começou a escalar a grade, mas os espinhos das buganvílias agarraram suas pernas, adentraram sua  carne de onde não verteu sangue. Nada o faria parar, tamanha era a sua ânsia de levar água para a mulher e  filho.
Observando tudo do outro lado da grade, aos poucos Pedro percebeu brotarem raízes dos pés de Leonel. Essas  logo se infiltraram no chão. De seus ouvidos, narinas e boca surgiram galhos florescidos. No rosto do homem que observava via se todo o horror que o consumia enquanto o corpo do amigo, seus membros se transformavam em mais uma buganvília a reforçar a grade. Os olhos do homem que tentara adentrar aquele paraíso caíram empurrados por galhos internos que surgiam cada vez mais fortes. Pedro afastou-se  temendo que aquilo também ocorresse com ele. 
Logo a mulher veio regar a nova buganvília que sedenta estremeceu ao receber as primeiras gotas. Ela sabia de sua sede. Chamando Leonel pelo nome, regou-o por mais tempo que as plantas anteriores. Do lado de fora, Pedro despercebido, engoliu em seco  e levou às mãos a cabeça pensando que aquilo era um pesadelo. Pediu água num gemido, mas ela não o ouviu. Tonto, trocando as pernas, começou a retornar pra casa. O que diria a Ester, mulher de Leonel, quando chegasse?
No caminho, ninguém. Seus pés estalavam pisando os galhos secos e torrões de terra. Há tempos que sabia que eram os únicos. Onde tinham ido e quando  não saberia dizer. Uma tontura estranha  tomava conta dele que temia  tornar-se uma planta  ali mesmo, embora  não sobrevivesse  no chão seco.
Em casa, Marta sua mulher chorava sem lagrimas. O choro aumentou quando percebeu que ele chegara de mãos vazias. Abraçou-o  triste e entre  soluços secos  disse estar grávida. O chão girou e ele  quase desfaleceu. O que ele faria agora? Ester, mulher de Leonel, veio do quartinho com olhos inchados e o bebe quase imóvel no colo. Não teve coragem de dizer nada. Passou a mão pelo cabelo desgrenhado e duro e sem olhar nos olhos delas, inventou qualquer coisa, quando perguntaram por Leonel.  Rápido sem detalhes, virado de costas, fingindo estar tirando um espinho do pé, disse que  teria que sair cedo para encontrar Leonel que ficara observando um novo local para se  mudarem. Tudo daria certo, tentou confortá-las.
Não conseguiu dormir. O tempo todo  a cena de Leonel transformando-se em uma planta teimava em se repetir. Tinha vontade de rir e de chorar. Pensava ter enlouquecido. Suspirava muito, levava a mão à cabeça, ao peito. Não entendia o que havia acontecido. Qual era o sentido de tudo aquilo?
Saiu cedo, nada havia pra comer ou  beber. O que mais  doía era saber que as duas ficariam ali naquela situação, com sede, com fome. Não entendia como ainda não tinham morrido, tantos dias naquela situação.  Voltou a casa do chafariz. O sol já a pino aumentando a secura da boca, os lábios já rachados pelo calor.  No pátio, folhagens verdes, árvores viçosas, pássaros de todos os tamanhos cantando e revoando de um arbusto a outro. No centro do terreno, a mulher de mármore apontando para o céu, a água corrente. Sentou se no chão do outro lado da rua e  chorou perguntando a Deus se ele tinha  se esquecido deles.
Um farfalhar sem vento o lembrou de Leonel ali transformado em Buganvília. Naquele pavor não saberia dizer com certeza quem, qual era ele. Eram tantos os pés daquela flor trançando na grade... Ouviu outra vez o barulho destoando nas folhas e reconheceu o amigo. Chegou chorando à cerca e de forma inexplicável, conversaram, sem falar.
Leonel estava consciente, revigorado. Sentia-se muito bem  e pediu a Pedro que comprovasse  sua amizade fazendo-lhe um favor.  Ao ouvir o pedido sacudiu a cabeça, chorou, disse que não conseguiria. Chorando ainda mais desnorteado, cambaleando de sede afastou-se do amigo sem saber o que fazer. No caminho para casa, alongado pela fraqueza, pensava na situação em que estavam e sem forças de continuar  lutando  pensou no pedido do amigo.
Em casa o silencio. As duas estavam desfalecidas. O peito da criança mexia muito leve e devagar, talvez nas últimas horas de vida. Sem pensar mais, sacudiu os braços  de Marta  que abriu os olhos com muito esforço.
- Vamos! – Disse  ele decidido.-  Vamos! Falta pouco agora. – Foi até  Ester, pegou a criança sem vida  nos braços  e falou.
- Leonel nos espera. Vamos! Ele esta bem, encontramos um lugar com água para vivermos!
Sem questionar e com passos curtos e lentos as duas começaram a  caminhada revigoradas pela esperança. O sol já tinha se escondido e o calor diminuíra ajudando no trajeto.

Ao chegarem à casa cercada de buganvílias  uma  mulher  caminhou até o portão e o abriu para eles. Pedro a reconheceu. Era a deusa de pedra do chafariz.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

O armazém

Na imobiliária várias fotos de propriedades do interior de  Vinha D’Alho.  Uma delas se destacava. Os galhos dos plátanos secos pelo inverno  criavam figuras desconexas.
- O que era esse  lugar? Não parece ser somente  uma  residência. – Felícia perguntou interessada.
O agente caminhou até a ponta da mesa aonde ela  folheava  o álbum  com fotos  de várias propriedades.
- Ah, sim. Aí era   um armazém  e a morada  dos proprietários.
Sem pensar, Felícia diz que quer ver o local.
-Veja as  outras fotos...Tem  outras mais próximas da....
- Eu quero ver essa! – Ela olhou  firme enquanto  falava.
Ele aquiesceu e marcaram  para o dia seguinte bem cedo.
                                                      ***
- Terminou o papel de embrulho, Alice! Traz  outro  ligeiro!
A menina ouviu o pai  gritar e  corre. Levou um novo rolo de papel pardo que ele usava pra embrulhar   a maioria das vendas, quase todas à granel.  Sabia o quanto ele detestava esperar. Aproveitou que o pai a chamou, e ficou por ali. Foi até a frente da venda. Sabia que  era por essa hora que  Maurídes passava por ali vindo da escola com sua égua moura . Olhou na estrada ao longe e na curva viu que ele apontava. Seu coração bateu na barriga. O cabelo louro um pouco comprido mexeu com o trote da égua.  Ele notou que ela estava ali, tinha certeza. Ele a notava, sim, embora não demonstrasse. Talvez tivesse medo de seu pai, sempre tão  austero. Mesmo de longe seus olhares  se juntaram. A respiração se acelerou. Ele estava perto. Estava  quase ..
-“Aliiiice”-  Ouviu o pai chamar -  “Vai  lá  pra  casa ajudar tua mãe com o almoço”.
Por  uns instantes  seus olhares  se cruzaram. Maurídes amarrou a égua no palanque ao lado do  plátano  com suas folhas muito verdes, quase  tanto  quanto  os seus olhos. Sua boca se abriu num suspiro. Ela tinha  que ir. Ela tinha sempre que obedecer o pai.
***
-Quem morava nesta casa? -  Felícia perguntou enquanto  Ricardo desviava a camionete  dos buracos na estrada
- Tenho os  dados deles na pasta. Não são  conhecidos, faz muito tempo que foram embora.Muito tempo mesmo... Nem devem estar mais vivos. Os netos que estão negociando...
- O que houve?  -  ele  apertou a  boca
- Não sei exatamente. Mas  houve um  incêndio na casa e   a filha  mais velha do casal morreu. Desgostosos, arrendaram  as terras e  foram embora  pra cidade. Essa  propriedade  está  de mão em mão. Merece  um dono caprichoso que  cuide ...
- Como era o nome  da menina?
- Ah não sei. – Ele  desvia  os olhos  da estrada por um momento e  brinca:
- Que curiosidade!! -   depois ficou em silêncio ao ver a  seriedade da cliente.
Ela  murmurou:  - “Alice” -  e virou  o rosto pra  fora  observando a paisagem.

O carro não tinha bem parado e Felícia já  estava  descendo. Como se nunca tivesse saído dali, correu até o plátano que ficava  bem defronte a  sua casa e viu as iniciais esculpidas ainda na madeira dentro de um coração:   A e M

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Ruminando

            
                                                                                             À Dorothy Parker
Isso é hora de homem casado chegar em casa?
Que ódio, que ódio. Passa por mim como se eu não existisse e vai direto pro quarto. Nem me olhou. Nem ouviu o que eu falei. Minha vontade é de dizer tudo o que eu penso tudo o que eu sinto. Não. Na verdade a minha vontade é de pegar um objeto duro e pesado, como esse enfeite de mesa aqui, e bater em sua cabeça e vê-lo cair. Cair tão baixo quanto eu estou me sentindo. Queria ver o sangue jorrando, a vida se esvaindo. Desgraçado!
Ei espera ai! Eu falei contigo, acho que o mínimo que você me deve é uma explicação. Eu não tenho nada com isso? Como assim, não tenho? Você jurou fidelidade  na frente do padre, jurou que ia ser fiel na alegria e na doença até que a morte nos separasse. E eu tô aqui, tô viva, embora nestas horas eu quisesse estar morta.Ei, você não está me ouvindo?
Filho da Puta. Ainda  ri, debochado. Vontade de bater nesta cara dele até  fazer esse risinho idiota  sumir. Se eu fosse mais forte faria ele cuspir  esses dentes com sangue, um por um, de tanto que eu ia bater. Maldito foi o dia que eu me abobei e casei com essa merda.  Devia ser proibido deixarem uma moça escolher marido antes dos 25. O que uma tonta de 20 anos sabe da vida? Só vê a aparência física, a marca do carro, e mais nada... Foi o que eu fiz... Tomei... Tomei bem naquele lugar.
O que? Você quer descansar? Sou eu que te canso? Por isso chega a essa hora? Olha pra mim, escuta o que eu falo!
Se ele não quer mais ficar casado comigo, por que não diz? Por que não é fiel consigo mesmo? Por que não fala que não quer mais? Não seria muito mais honesto? Ele deveria chegar e dizer, olha,  não tá dando mais, vamos cada um seguir pro seu lado, você pode ficar com as crianças e eu  os pego  aos finais de semana... Estou apaixonado por outra... Ai, que dor!  Eu conseguiria ouvir isso?
Sozinha eu teria a minha dignidade e poderia viver muito melhor. Viver melhor sem ele?
Não, não... Eu não poderia. Eu não saberia ser sozinha. Nada me decifra tão bem quanto uma passagem do livro da Clarice Lispector “ A Paixão Segundo G.H”  que fala na terceira perna. Ele é minha terceira perna. Acostumei-me a andar com as três e não sei e não quero andar somente com duas. Como eu poderia viver sem ele? Parece que não sei, eu não saberia nem encontrar uma razão para acordar no dia seguinte. Eu vivo por ele, para ele.
Vai tomar banho, é? Não tomou no Motel, na casa dela... no lugar  onde você estava? O quê? Como você tem coragem? Não, não fala nada! Não fala, porque eu não quero saber, não quero ouvir. Para! Para!
Meu Deus! Que fraca, que nada que eu sou que  me sujeito a essa situação. Sei que ele tem outra e aceito. Como posso? Eu sou nada sem ele, não tenho vida sem ele. Não poderia sustentar as crianças, não poderia seguir adiante. Tantos casamentos passam por fases difíceis e depois  melhoram. O nosso vai ser assim. Essa é só uma fase, só pode ser. Nós vamos passar por isso e tudo vai voltar a ser como era. Vamos ser felizes, vamos terminar de criar nossos filhos.

Você não vai comer nada? Eu aqueço algo rapidinho? Não quer? Está bem. Vamos dormir, sim. Está muito quente? Espera que eu já troco de cobertor. Está melhor, agora? Está bem. Já desligo a luz. Boa noite pra você também.