Berta caminha pelo apartamento silencioso. Abre a porta do quarto de
sua filha Flora, que desapareceu a cinco anos atrás. Observa a cama
vazia arrumada com uma colcha verde. Na parede, um elefante cor de rosa
pintado escorregando por um arco íris multicor.
Sente cheiro de lavanda e talco. Ao sair, encosta a porta devagar. Vai ao banheiro, puxa a descarga sem necessidade. Na cozinha, abre a geladeira, e logo fecha.
Liga a TV na sala de estar, na tela um casal discute. Atira-se no sofá, pega um álbum de família, do tempo em que sua mãe era criança, embaixo da mesinha de centro. Ao folheá-lo devagarinho, sem prestar muita atenção nas fotos amarelecidas que conhecia de cor, Berta vê Flora, sua filha.
Endireita as costas, franze a testa e arregala os olhos sem entender o que ocorria. A mesma tiara, o mesmo pijama rosa com desenhos verdes que vestia na noite em que sumira, no colo da vó de cenho franzido sentada ao centro, de mãos dadas com o marido. Ao lado direito, duas meninas; e no esquerdo, um menino. Coça o nariz, funga. Pisca, várias vezes. Levanta devagar quase vomitando e se direciona à pia. Pega um copo e enche com água da torneira e entorna. O líquido escorre pelos cantos da boca. Volta com os olhos muito abertos e observa a foto outra vez.
Sem desviar a atenção da imagem, disca o número da casa dos pais:
- Mãe, posso ir aí?
- Sim, o que houve? Você está bem?
Larga o aparelho na mesinha sem responder e sai às pressas com o álbum embaixo do braço.
Ao chegar na casa onde nasceu, nem os cumprimenta. Passa direto e corre até o quarto da avó que dorme.
- Berta, faça o favor... O que houve? Deixe sua avó descansar. O que não pode esperar até amanhã? – A mãe segue seus passos
- Vó, quem é essa menina aqui? - Entra sem bater, liga a luz, senta na cama ao lado da octogenária que se ergue piscando sem entender muito o que ocorre. A senhora senta na cama devagar, amparada pela filha, coloca os óculos e fixa o olhar onde o dedo da neta indica.
- Que menina? Aqui é a sua mãe, aqui - Não, vó! Essa pequeninha, no seu colo. - Berta puxa o álbum pra indicar a imagem que não sai de sua cabeça
-Não tem ninguém no meu colo. – Pisca novamente e ajeita melhor os óculos. - A tua tia é a menor das meninas. Veja, é esta aqui ao meu lado. - O dedo com algumas manchas senis aponta para a única menina na foto que não era a sua mãe.
Berta arranca o álbum das mãos da avó, cerra os punhos e percebe que não há, realmente, nenhuma criança no colo do casal. Aperta a boca, sente os olhares piedosos grudados em si e sai dali mais rápido do que entrou.
Ao retornar para casa, Berta desaba no sofá. Libera o pranto reprimido e o choro começa leve, mas logo seu corpo todo sacode. Deita de lado a cabeça e bate com ela fraquinho no espaldar da poltrona. Quer deixar de existir.
Num salto, pega outra vez o álbum e passa as primeiras folhas com sofreguidão. Observa bem a mesma foto de antes e vê com todos os detalhes a menina no colo dos avós. Os olhos graúdos, a roupa, o cabelo escuro... Não tem dúvidas.
Passa a próxima folha. Flora, vestindo roupa da época, junto de sua mãe e seus tios. Agora sentados no chão com os cabelos revoltos em frente a uma malha de taquareiras envergadas pelo vento forte na companhia de um cão preto de pelo curto. Na página seguinte, Flora montada num bezerro zebu, com sua mãe segurando o animal e a tia com a mão direita em suas costas. Ao fundo uma casa simples estilo colonial português já com a madeira carcomida pelo tempo.
A mão treme tanto que mal consegue passar a outra folha. Uma fotografia, em especial, chama sua atenção. Flora, vestida de noiva, aparentando não mais que 23 anos, com um vestido drapeado, todo bordado com pérolas e miçangas brancas , se contempla no espelho ovalado. Seu semblante não demonstra alegria ou tristeza. O rosto de sua aia, bem ao fundo do espelho, é bem definido. Seu olhar rancoroso encara Berta diretamente que desmaia ao se reconhecer.
Sente cheiro de lavanda e talco. Ao sair, encosta a porta devagar. Vai ao banheiro, puxa a descarga sem necessidade. Na cozinha, abre a geladeira, e logo fecha.
Liga a TV na sala de estar, na tela um casal discute. Atira-se no sofá, pega um álbum de família, do tempo em que sua mãe era criança, embaixo da mesinha de centro. Ao folheá-lo devagarinho, sem prestar muita atenção nas fotos amarelecidas que conhecia de cor, Berta vê Flora, sua filha.
Endireita as costas, franze a testa e arregala os olhos sem entender o que ocorria. A mesma tiara, o mesmo pijama rosa com desenhos verdes que vestia na noite em que sumira, no colo da vó de cenho franzido sentada ao centro, de mãos dadas com o marido. Ao lado direito, duas meninas; e no esquerdo, um menino. Coça o nariz, funga. Pisca, várias vezes. Levanta devagar quase vomitando e se direciona à pia. Pega um copo e enche com água da torneira e entorna. O líquido escorre pelos cantos da boca. Volta com os olhos muito abertos e observa a foto outra vez.
Sem desviar a atenção da imagem, disca o número da casa dos pais:
- Mãe, posso ir aí?
- Sim, o que houve? Você está bem?
Larga o aparelho na mesinha sem responder e sai às pressas com o álbum embaixo do braço.
Ao chegar na casa onde nasceu, nem os cumprimenta. Passa direto e corre até o quarto da avó que dorme.
- Berta, faça o favor... O que houve? Deixe sua avó descansar. O que não pode esperar até amanhã? – A mãe segue seus passos
- Vó, quem é essa menina aqui? - Entra sem bater, liga a luz, senta na cama ao lado da octogenária que se ergue piscando sem entender muito o que ocorre. A senhora senta na cama devagar, amparada pela filha, coloca os óculos e fixa o olhar onde o dedo da neta indica.
- Que menina? Aqui é a sua mãe, aqui - Não, vó! Essa pequeninha, no seu colo. - Berta puxa o álbum pra indicar a imagem que não sai de sua cabeça
-Não tem ninguém no meu colo. – Pisca novamente e ajeita melhor os óculos. - A tua tia é a menor das meninas. Veja, é esta aqui ao meu lado. - O dedo com algumas manchas senis aponta para a única menina na foto que não era a sua mãe.
Berta arranca o álbum das mãos da avó, cerra os punhos e percebe que não há, realmente, nenhuma criança no colo do casal. Aperta a boca, sente os olhares piedosos grudados em si e sai dali mais rápido do que entrou.
Ao retornar para casa, Berta desaba no sofá. Libera o pranto reprimido e o choro começa leve, mas logo seu corpo todo sacode. Deita de lado a cabeça e bate com ela fraquinho no espaldar da poltrona. Quer deixar de existir.
Num salto, pega outra vez o álbum e passa as primeiras folhas com sofreguidão. Observa bem a mesma foto de antes e vê com todos os detalhes a menina no colo dos avós. Os olhos graúdos, a roupa, o cabelo escuro... Não tem dúvidas.
Passa a próxima folha. Flora, vestindo roupa da época, junto de sua mãe e seus tios. Agora sentados no chão com os cabelos revoltos em frente a uma malha de taquareiras envergadas pelo vento forte na companhia de um cão preto de pelo curto. Na página seguinte, Flora montada num bezerro zebu, com sua mãe segurando o animal e a tia com a mão direita em suas costas. Ao fundo uma casa simples estilo colonial português já com a madeira carcomida pelo tempo.
A mão treme tanto que mal consegue passar a outra folha. Uma fotografia, em especial, chama sua atenção. Flora, vestida de noiva, aparentando não mais que 23 anos, com um vestido drapeado, todo bordado com pérolas e miçangas brancas , se contempla no espelho ovalado. Seu semblante não demonstra alegria ou tristeza. O rosto de sua aia, bem ao fundo do espelho, é bem definido. Seu olhar rancoroso encara Berta diretamente que desmaia ao se reconhecer.
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