Photo Credits to Massimo Pinca
Os moradores da casa da esquina escondem-se atrás
das grossas cortinas das janelas e espiam quem passa na calçada. As grades de
ferro deixam a mostra as poucas pessoas, todas com máscaras cirúrgicas,
que caminham rápido em direção às suas casas.
- Mãe, tem dois homens parados no portão.
- Não são os entregadores do supermercado com as
compras, filha?
A menina, com a respiração rápida e boca contraída,
não responde. Aproxima-se de Elza e afunda o rosto em seu corpo.
- Eles só estão olhando, não vão entrar. – Elza
abraça forte a menina enquanto seus olhos procuram os do marido.
Leonardo caminha até a janela. Dois homens jovens,
parados de pé com rostos cobertos, ao lado de fora portão. A raiva permeia a
veste que esconde o medo do vírus.
- Não parecem armados. Mas não saiam na rua com os
cães. - Fala baixo para a esposa - Estão cada dia mais agressivos, não sei
quanto tempo vamos aguentar.
Elza pressiona os ouvidos da filha escondidos
em cachos dourados contra o corpo e aquiesce com um movimento de cabeça. Não
quer assustar a menina ainda mais. Se houver uma saída e haverá, Janete
crescerá, se tornará uma adulta equilibrada e
Elza espera, com menos traumas possível.
Ao sentir cheiro de estranho Leão e Urso latem.
Leonardo tenta entretê-los com uma bola.
- Eles sabem que os dois estão aqui, Leo. -
Elza acaricia os cães com voz chorosa.
- Isso vai passar, Elza. A solução vai aparecer
antes que o pior aconteça! Também deve ter mais pessoas como nós. – Ele não
sabe se acredita no que diz. Ao ouvir as próprias palavras proferidas por sua
voz seus olhos fixam-se no nada.
***
Leonardo abre a porta dos fundos, espreita os dois
lados do pátio. Inspira o ar que vem direto das árvores e plantas.
Livra-se dos chinelos e afunda os pés na grama. Abre bem os dedos,
estica-os e os encolhe até que as folhas
verdes e largas passem entre eles. Sorri ao sentir o frescor em seus pés,
esquecido, por um momento, do que ocorre em seu país.
Olha ao seu redor devagar enquanto puxa um ar triste
para dentro dos seus pulmões, atento a qualquer movimento. Caminha com cuidado
até a peça ao lado da piscina onde guarda ferramentas e a máquina de cortar
grama. Passa por baixo da caneleira e da mangueira intactas. Estica o braço,
encosta a mão no tronco grosso e áspero. Fecha os olhos e em uma reza, pede
forças à natureza. Continua, enquanto seus olhos procuram inimigos em sua volta.
Com cenho franzido caminha até a grade, onde plantou as trepadeiras
fotinia quando tudo começou. Um bom pedaço do terreno já se esconde
dos curiosos que espiam de fora.
As hortênsias rosas e azuis não foram mais podadas, crescem livres com o mesmo
intuito.
O medo descontrola seu peito quando se aproxima do portão. Lembrou dos dois homens que observavam sua
casa. Não os reconhecera, por causa das
máscaras. Leonardo observa marcas na madeira, afundadas com algum objeto de
ferro, talvez um martelo. Estranho não terem ouvido nada, nem os cães. As
dobradiças da parte superior foram mexidas, afrouxadas. Quem queria entrar,
desistiu por algum motivo. Mas era uma questão de tempo.
Aperta os parafusos, sua frio, passa o dorso da mão
para secar a testa. Troca rápido as porcas e arruelas danificadas com medo que
um inimigo surgisse. Sente olhos
acompanharem seus movimentos. Levanta a cabeça.
A uns 200 metros um homem alto com máscara, olha
para ele. Não o reconhece. Para e observa-o, sem saber qual será a sua atitude.
Solta o ar que mantem preso ao ver que a pessoa corre, distancia-se dele. O
medo anda na rua.
O furgão de entrega do supermercado larga na
entrada do portão as duas caixas de sempre: uma com utensílios de cozinha e
limpeza, álcool gel e a outra com frutas, e alimentos não perecíveis.
Busca o telefone no bolso. O pavor é tanto que há
dias não sabe dos parentes e amigos. Sinal morto. Sem cobertura o aparelho
não tem serventia.
As refeições fracionadas são silenciosas. Os
cães comeram os últimos farelos de ração naquele dia. Assistem filmes, os
canais abertos só falam do vírus.
Leonardo levanta com o sol. Abre a porta da casa,
desce os três degraus da cozinha e olha para os lados. O caminho livre o
encoraja a ir rápido até o portão pegar a comida. Não tinha ouvido barulho da
camioneta, mas pelo adiantado da hora, os alimentos, víveres já deviam estar
ali. A rua dorme vazia, nem o vento tem coragem de sair . O estômago
afunda no medo. Volta, caminha pelo pátio, passa a mão nas plantas, sente a
textura, uma energia boa fluir delas. Verifica a porta intacta do
portãozinho e retorna ao local onde as
compras deveriam estar. O coração pula
em bolhas de ar, flutuando dentro do peito em uma sensação ruim.
Entra na cozinha e Elza inspira forte ao ver as
mãos vazias do marido. O olhar conta que a fome logo viria. Elza vira-se
de costas, de frente para a pia, morde o
lábio e expira com confiança na voz
engolindo o choro.
- Vou preparar algo com o que temos, sobrou feijão
de ontem... Um pouco de arroz. No freezer ainda temos bastante coisa congelada,
para outros dias. – fala rápido mais para consolar a si própria - Podemos
plantar também. Separei algumas sementes de abóbora... No lixo ecológico deve
haver outras e...
O repórter ao vivo na televisão a interrompe:
- O vírus se espalha rapidamente. Animais em
geral são transmissores. Mas não há motivo para pânico, pois pessoas
também transmitem o vírus. No mundo já são mais de dois milhões de
infectados. O quadro inicia com febre e tosse no primeiro dia, no segundo,
pessoas do grupo de risco podem evoluir para crise respiratória aguda.
Recomenda-se ficar em casa e ir ao hospital somente se o infectado sentir muita
dor ao respirar. Não há necessidade para pânico, repito. Álcool gel e
máscaras cirúrgicas já estão em falta. O governo já importou vacinas que
chegarão em duas semanas. As autoridades pedem calma para a população. Saques a
lojas e supermercados e hospitais não
levarão a lugar algum. Pedimos calma e não há necessidade de exterminar seus
animais domésticos, eles são tão vítimas quanto... - Um grupo de
quatro rapazes com máscaras chega por atrás do repórter. Um deles pega o
microfone com certa violência e tenta falar. Outro agride o câmera man, a
imagem congela. Câmeras são desligadas. A imagem some da tela e o canal põe
propaganda. Indecisos talvez sobre o que colocar, repetem o pronunciamento do
presidente da noite anterior.
Antes de comentarem sobre a reportagem, a TV, a
geladeira e o freezer se desligam num eco desafinado.
- Vou ver o disjuntor. – Leonardo sai pela
porta
- Leo, não perde tempo. Sabíamos que isso ia
acontecer mais cedo ou mais tarde. – Elza olha para o chão.
Ele por um momento, vê no piso limpo, os próximos
acontecimentos de seus dias, como em um filme, e se afasta sem olhar para ela.
Volta da horta com pequenas folhas de couve.
Arrepende-se por não ter sido mais caprichoso com o quintal.
- Replantei alguns pés de couve e algumas sementes.
Não sei exatamente do que eram. A chuva anda escassa, vou molhar os...
- Leonardo! – Ela abre a torneira e sai da frente
da pia, para que ele veja que mesmo aberta, nem uma gota pinga.
Sem uma palavra Leonardo, vira as costas e pega
todos os baldes da lavanderia. Arruma-os de maneira que possa armazenar o gelo
do freezer ao derreter.
- Essas comidas vão estragar.- Ela fala
- Você pode dizer algo que eu não saiba? -
Ele passa a mão pelo cabelo.
Os cães sempre amistosos brigam pela primeira vez
naquela tarde. A fome chama a raiva.
- Vamos solta-los na rua? Pelo menos terão
uma chance de lutar por suas vidas, quem sabe encontrar comida, um osso.- Ela
diz.
- Lutar? Não duram dez minutos com essa gente
enlouquecida. - Leonardo franze a
testa. Desconhece a mulher com quem casou.
- Vamos morrer todos aqui? - Elza não chora e o
encara firme.
- E solta-los vai nos salvar?
As ruas vazias, nem carros passam. Leonardo não
dorme. Fica de espreita, no quarto de casal, atrás da cortina, de frente para o
portão. Há vários dias ninguém passa na rua, nem carros nem pessoas.
- Vou sair amanhã. Não aguento mais. Quem sabe algo
tenha mudado?
- Não. Você não pode sair. – Elza levanta, caminha
e senta novamente. Esconde o rosto entre as mãos. A menina observa os dois sem
dizer nada. – E se você não voltar mais? O que será de nós?
- Temos que fazer algo. Não podemos mais ficar
aqui, sem água, sem comida, sem notícias. Não sabemos se piorou, se melhorou,
se encontraram uma saída, um remédio, uma vacina.
O medo obriga-os a dormirem todos no quarto de
casal. Chaveados, as janelas com trancas de madeira, pregadas de forma
irregular. Com a boca seca e uma procela na barriga, todos acordam no meio da
noite. Os cães latem, levantam o focinho, cheiram algo que os humanos não sentem
e choram.
- Eles ouviram alguma coisa.- Elza senta-se na cama
e cobre-se com o cobertor até o queixo.
Os cães continuam a cheirar o ar e a latir.
Caminham até Elza, e voltam à entrada duas vezes.
- Estão entrando. - avisa Leonardo com o
ouvido na porta
Um caminhão, algo grande, entra no
pátio e passa sem dificuldade por sobre a grade num estrondo. Os cães
arranham a porta do quarto, suas unhas deixam marcas na pintura da porta. Mãe e
filha, abraçam-se na cama. Leonardo de pé, na porta, olha para as duas sem
conseguir defende-las. Elza aperta forte a filha Janete junto ao peito.
Passos e vozes já entram na casa. Móveis, quadros e vasos vão ao chão. Latidos e gritos ocupam os espaços.