A fantástica fábrica de escritores do Sul
Um leitor desavisado, que junte os livros brasileiros lançados nos últimos anos, pode concluir que nove entre dez bons autores jovens do Brasil vieram do Rio Grande do Sul - o que daria a falsa impressão de que eles são criados em série no Estado. Michel Laub, Amilcar Bettega, Cíntia Moscovich, Daniel Galera (que apenas nasceu em São Paulo), Paulo Scott e Carol Bensimon são apenas alguns dos escritores que têm se destacado no panorama nacional, seja no campo da crítica, das feiras ou no campo dos prêmios literários. São o tipo de autor cujo próximo livro é sempre aguardado com interesse.
Todos esses nomes têm algo em comum. De A a Z, frequentaram uma das oficinas literárias mais tradicionais do país, a do professor e escritor Luiz Antonio de Assis Brasil. São 27 anos de atividade, com um trânsito de cerca de 700 alunos, dos quais uma pequena (mas significativa) parcela acabou vingando na arte de escrever.
"Embora minha oficina seja a mais antiga, há outras que vieram na sequência, contribuindo para esse quadro extremamente favorável de bons escritores", afirma Assis Brasil. Ele prefere o nome "Oficina da PUC-RS", mas os alunos a chamam mesmo de "Oficina do Assis", agora ministradas sem a presença física do professor, via internet.
Em carne e osso ou não, Assis Brasil, de 67 anos, parece ter uma grande responsabilidade nos pacotes de talentos que vieram chegando do Sul ao longo dessas quase três décadas. Por que tantos escritores, e tantos escritores de talento? "O Rio Grande tem uma antiga tradição literária. Aqui foi escrito o segundo romance brasileiro e um dos primeiros livros de poesia", diz o professor. "No século XIX tivemos uma espécie de academia de letras, o Parthenon Literário, que expandiu a estética romântica entre nós."
Alguns dos escritores que fizeram a oficina de Assis Brasil concordam em um ponto: ele forma bons leitores. "Aprendi a ler melhor. Todo escritor é, antes de mais nada, um leitor de si mesmo. E só sendo um bom leitor ele pode avaliar onde o texto está mais fraco, o que falta aos personagens", diz Michel Laub, autor do premiado "Diário da Queda". "Acho que aprendi a ler de olhos arregalados, com atenção aos detalhes, à mecânica, ao funcionamento da máquina. Não é à toa que chamamos isso de oficina. É na mecânica da coisa (e esta coisa só vai funcionar se tiver uma boa mecânica) que a oficina atua", diz Amilcar Bettega, premiado com o Portugal Telecom de 2005 com "Os Lados do Círculo".
Mas quem quis passar de leitor a autor nas oficinas sempre teve que trabalhar mais. "Aprendi muita coisa com o Assis", conta Cíntia Moscovich, autora de "Arquitetura do Arco-Íris". "Aprendi a cortar, cortar e cortar. A reescrever e a revisar mil vezes. Aprendi o valor da ação para a narrativa e o desastre dos adjetivos beletristas."
A oficina, qualquer oficina literária, não carimba a carteira profissional de ninguém. A maioria dos alunos descobre, antes tarde do que nunca, que é melhor mudar de desejo ou profissão. Mas o gosto pela leitura, adquirido no contato com os textos, costuma permanecer. Assis Brasil fez bons amigos nesses anos. "Ele me poupou uns dez anos de tentativa e erro. O mesmo te dirão o Amilcar Bettega, o Michel Laub, o Daniel Galera, a Carol Bensimon e outros. A oficina do Assis é preciosa", afirma Cíntia.
Demonstrando como é provar do próprio veneno e do próprio antídoto, Assis Brasil acaba de lançar "Figura na Sombra" (L&PM, 264 págs., R$ 39), último romance da tetralogia "Visitantes ao Sul", da qual fazem parte "O Pintor de Retratos" (2001), "A Margem Imóvel do Rio" (2003) e "Música Perdida" (2006). "Figura na Sombra" conta a história dos exploradores Aimé Bonpland e Alexander von Humboldt, que passaram juntos pelo Brasil no século XIX mas tiveram trajetórias opostas: Humboldt ficou abraçado ao sucesso, enquanto Bonpland largou tudo por uma vida simples na América do Sul.
Como os outros livros do autor, "Figura na Sombra" tem uma arquitetura simples, bem escrita, sem grandes mistérios e focado na terra do escritor. "No ano em que Debussy compunha 'L'Après-Midi d'un Faune', e Rodin esculpia seu 'Orphée et Eurydice', nós, os gaúchos, nos envolvíamos numa sangrenta guerra civil, com perversos atos de degola. Escrevo sobre esses temas para tentar entendê-los", diz Assis Brasil.
Notável é como os livros do professor nada têm a ver com a ficção de seus alunos célebres. E nem os alunos célebres de Assis Brasil, ainda que usando a mesma cor local, parecem ter muita coisa em comum. "Para ficar com a turma que está publicando hoje, é só pegar os livros desses que passaram pela oficina e comparar para ver se correspondem a um padrão", diz Bettega.
"A chave está em respeitar a voz própria do aluno", diz o escritor. "Sem esse respeito, não há a menor possibilidade de realizar algo útil. A arte é o domínio da liberdade. Seria contraditório, de minha parte, limitar essa liberdade." Encontrar a própria voz é uma das tarefas mais árduas de qualquer escritor. O que Assis Brasil propõe, em geral, é um exercício de criatividade, na base de jogos, questionamentos e contato direto, a seco, com a obra de outros autores. No caminho de tudo, a prática. "E a quem possa ter dúvidas sobre o peso da minha influência, sugiro ler os textos de meus alunos", adverte o professor. "São muito diferentes dos meus e completamente opostos, estética e tematicamente, ao que eu escrevo. E é assim que deve ser."
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