"Sou professor
universitário e escritor. E como acadêmico-escritor vivo uma situação patética,
para não dizer hilária.
Escrevo um
romance. Que me toma anos de pesquisa, anos de trabalho para redigi-lo. Não faço
citações, não transcrevo textos alheios. Minha bibliografia é o conjunto de
obras que fui capaz de ler ao longo de toda a minha vida, somada aos filmes que
vi, às músicas que ouvi, às experiências que vivi. Como sou
professor-universitário de pós-graduação em Escrita Criativa, vivo acossado pelo
que se conhece por produção
acadêmica, dados que precisam ser lançados no Currículo Lattes, por que se
eu não tiver uma determinada pontuação, serei descredenciado; meu curso, no caso
a Faculdade de Letras, será prejudicado no ranking nacional das universidades
brasileiras.
Meu romance, tão
demorada e pacientemente elaborado, alguns me tomam quatro ou cinco anos de
trabalho, atividade em que apliquei engenho e arte, em que procurei o que a
crítica literária chama de tour-de-force, não vale praticamente
nada como produção acadêmica.
E, depois que
publico o romance, vivo uma situação verdadeiramente
kafkiana.
Um aluno faz um ensaio de algumas páginas sobre o meu romance e publica suas considerações
numa Revista de Qualis A e recebe uma pontuação maior que a minha em termos de
produção
acadêmica...
Por
quê?
Porque tolamente o
meu país, seus governantes e todos os reprodutores de platitudes, que não leram
as críticas de Emanuel Kant, a da razão
pura, a da razão prática e a da
razão estética, consideram a arte,
qualquer que seja, inferior ao que eles consideram ciência...
Ciência e arte são
modalidades dialéticas de um mesmo processo mental. As entidades artificiais (e sublinho o
sintagma), como já disse Luis Racionero, que compõem a arte são previamente inexistentes, como as da
ciência. Nossos golens de palavras e nossos labirintos de imagens não diferem,
em essência, das fórmulas, dos signos, dos parâmetros, das funções, dos gráficos
e leis que compõem os conjuntos de relações simbólicas de qualquer ciência.
Até o final do
século XVII a mesma techné comandava
os dois fenômenos, arte e ciência. Sem o conhecimento da perspectiva, Leonardo
da Vinci não teria sido possível. O Sturm
und Drang é que transformou essa excisão numa condição intrínseca. E que é
completamente falsa. E injusta.
Assim que
deixarmos o romantismo para trás, haveremos de reintegrar esses dois processos e
nos livraremos do preconceito que causou essa triste separação. Birkhoff já
elaborou a fórmula da valoração estética, se é que precisamos apelar para o
jargão científico: m = o/c. Nessa
fórmula, as variáveis são: c = complexidade do objeto; m = sentimento de valor
ou medida estética; e o = quantidade de harmonia, simetria e ordem.
O Brasil mudou.
Além de uma mulher na presidência, temos agora uma presidenta. Reacionários e conservadores
foram unanimemente “científicos” na afirmação da impossibilidade de declinação,
embora o vernáculo já consignasse o termo como substantivo feminino há
séculos.
A mudança de
postura quanto ao valor da produção artística, para fins de pontuação no Lattes,
passa também por uma tomada de posição política. O CNPQ há de ser coerente com
os novos ares que sopram sobre a República e há de reavaliar esse equívoco. Na
PUC do Rio Grande do Sul já temos mestrado e doutorado em Escrita Criativa, um
curso que formará novos professores-escritores, formandos que serão lesados
academicamente, caso esse estado de coisas
persistir.
A teoria da
relatividade e a teoria quântica há muito destruíram a noção cartesiana de
objeto científico. Quando a própria matéria já deixou de ser uma substância
sólida para se transformar em energia vibratória, um oceano de luz e movimento
incessante, a noção, atrasada e preconceituosa, de ciência precisa ser revista,
especialmente nas ciências humanas (ué, literatura é ciência
humana?).
Professores de
Escrita Criativa como eu, com mestrado em Literatura Brasileira e doutorado em
Teoria Literária, exigimos equivalência
de forma e de tratamento no Currículo Lattes. Ou então que os
professores-cientistas produzam textos artísticos
também."
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