Friends are not FOOD

Friends  are not FOOD

sábado, 20 de dezembro de 2014

Leite materno


No quarto todo branco, persianas entreabertas deixam o ar da noite entrar. O tecido estampado da cortina dança leve, sem música. Os cabelos pretos espalhados, afundados no travesseiro macio, contrastam com o alvo da fronha com poucos bordados. Num sono profundo, vez ou outra, as pálpebras mexem rápido sem sonhar em acordar. Um ligeiro desconforto nos seios. Os bicos intumescem e um queimor ardido corre por baixo da pele desde o mamilo até perto do pescoço. O alimento branco começa a pingar lento e fraco, mas logo um fio fino começa sem parar. E o leite corre em pequenos jatos.
Sara levanta e senta rápido, pisca algumas vezes. Leva a mão aos seios que pingam, endurecidos. Com a camisola molhada corre ao quartinho que fica ao lado e olha a criança num pijaminha rosa que resmunga ainda dormindo. O cabelinho espetado e preto, os punhos fechados. Levanta o bebê com cuidado e a leva para o quarto onde dorme. Deita de lado e ajeita a menina pra mamar. O bebê suga com vontade, fazendo barulhos. O leite, misturado com saliva, escorre pelo canto da boquinha bem desenhada. A menina sorri enquanto mama e aperta o dedo indicador da mãe, que não perde um detalhe. Sara quer guardar para sempre esses momentos que se perdem tão rápido nas memórias do tempo.
A menina dorme mamando. Sara vira cuidadosamente o bebê para que ela fique de lado. Assim deitada, se a menina regurgitar não corre o risco de se afogar. Fica olhando e sorrindo para  a filhinha  por mais alguns minutos, seus olhos transbordam  carinho.
- Você não vai dormir? – O marido pisca várias vezes e coça os olhos. - Vai ficar olhando pra ela até quando? – Nas suas bochechas, duas covinhas aparecem quando sorri.
- Ela não é linda? – Sara pergunta sem tirar os olhos da menina.
- Sim, - as covinhas ficam mais fundas - é parecida comigo! – Ele puxa  o cabelo dela bem fraquinho e a beija. – Vamos dormir, amanhã tenho que acordar cedo. – Ele se vira para o outro lado e  Sara olha para a menina mais um pouco. Não vai levá-la  para  o  quartinho, daqui a pouco ela  precisa mamar novamente.
As folhas das árvores dançam, os galhos mexem leves. Não se pode afirmar com certeza quem é o responsável pelo vai e vem das folhas,  se o vento ou  a mão zombeteira do tempo. No lado de fora do hospital, a vegetação frondosa traz alento àquele lugar de tantas dores. Uma pequena gruta com uma estátua de uma santa de  pedra envolta em folhagens muito verdes, uma fonte artificial onde a água corre sem parar, completam a decoração do jardim.

Dr. Álvaro conversa com Bernardo sobre o estado de sua tia:
- O estado da D. Sara  é irreversível. Pneumonia nesta idade avançada se torna uma doença  bem grave. – O médico olha bem nos olhos do único parente da paciente que apareceu por ali desde que ela foi internada há alguns dias, vinda do asilo municipal. – Talvez ela dure mais uma semana,  quem sabe menos... – Os olhos dele não denunciavam pesar. Era apenas um sobrinho daquela senhora, irmã de sua mãe  que já havia morrido há alguns anos.
- Ok, então... - Comprime a boca, depois passa a língua pelos lábios -  Me avise por favor... do andamento ...  – Levanta a manga do paletó bem passado e olha o relógio, e  sem completar o pensamento estica o braço  oferecendo  uma mão frouxa para o médico apertar. Segue para a saída quando o outro o interrompe.
- Você não quer conversar com ela antes? Ela está inconsciente, mas sabemos que  os pacientes  sentem  e ouvem quando os parentes conversam com eles... - Vou deixar você a sós com ela.  – O médico se afasta, fechando a porta  atrás de si.
Ele respira fundo, contrariado. A visão da senhora moribunda na cama  naquele quarto sozinha não  o toca. Pra ele, ela é  uma desconhecida. Bernardo permanece aos pés da cama e não sabe onde  enfiar as mãos.  Nunca fora íntimo da tia, nem mesmo quando a mãe era viva. Ela nunca se casara, e pouco frequentara  a casa dos seus pais quando ele era criança.  A verdade é que não estava sentindo nem um pouco a sua morte próxima. Estava até mesmo constrangido de estar ali. Filho único, não tinha irmãos  pra dividir  esse problema,  e pra piorar, ela era a única irmã  da mãe  já morta.
Uma brisa fresca entra pela janela do quarto muito branco.  Sara vê a filha correr e fechar a janela, preocupando-se  para que  o vento não chegue até ela, piorando assim o seu estado de saúde  já tão  delicado.

Sara tenta se ajeitar na cama, mas não consegue. Suas costas doem muito, respira com dificuldade. Vira o rosto e vê a preocupação da filha. Suspira e pensa que se for hora de morrer, que seja. Viveu bastante, sua criança  já é uma mulher, formada, tem um bom emprego... Já fez sua obrigação de mãe. Volta a cabeça  para o alto e suspira, sentindo uma leve dor no peito. No seu olhar que congela,  se derrama a alegria de ter vivido uma existência feliz. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário