Friends are not FOOD

Friends  are not FOOD

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Casa na praia


Os três carros chegaram juntos. Nenhum dos motoristas queria ser o primeiro a descer, abrir o portão e entrar. Os seus olhares entristecidos se procuraram enquanto estacionavam  do lado de fora do pátio amarelado pelas  alamandas floridas. Ora viravam para o alto, ora engoliam em seco e olhavam para a casa... Era a primeira vez que os irmãos iam à praia desde a morte de sua mãe.
Fazia pouco mais de um mês que Dona Docinho havia morrido. Sempre muito amada e querida por todos que a conheciam, era chamada assim, por ser, como a alcunha já diz, um doce de pessoa. 
Nascera e se criara na praia, uma das filhas mais velhas de uma grande família de oito irmãos. Vivera ali até os dezoito anos, quando se casou e fora morar no interior de Vinha  D’Alho, distante mais de 50 quilômetros. As visitas ao litoral se tornaram escassas à medida que os filhos foram nascendo e isso a deixava triste. Deixara a família para trás para seguir o marido. O nascimento dos cinco filhos foi tomando o lugar da saudade. Muitos anos depois, quando os filhos se tornaram homens e ela  enviuvou, pôde  fazer o que realmente queria. Todo o mês de dezembro arrumava suas coisas, levava a  empregada , a gata Izzy, sua melhor companhia, e  mudava de endereço por  três meses, só voltando para Vinha D’alho depois do feriado de Páscoa. Adorava praia e estar cercada pelos familiares. Quando os filhos apareciam  por lá a alegria se completava. Pra ela, felicidade era estar ao lado dos irmãos, dos filhos, jogar pife com eles e  tomar espumante gelado.
Naquele dia, o filho mais novo, Leandro, estava com as chaves. Com uma fisgada no peito abriu o cadeado do portão sempre olhando para a casa. Não conseguiria descrever sua dor, nunca fora bom com as palavras.
Entraram  pela frente e  abriram as janelas e portas com a respiração e a voz presas. Uma nesga de sol, também de luto, entrou triste e silenciosa em todos os cômodos. Começaram a limpar, tirar o pó. A casa estava fechada desde o último verão e  isso os absorveu. Todos os cômodos, todos os móveis falavam dela, falavam nela... O cheiro, o jeito, tudo.
A suíte da mãe ficou vazia por respeito, por consideração... Ninguém quis ocupar seu quarto, intacto desde seu desaparecimento há pouco mais de um mês.
Sentados na área da frente, ninguém falava nada. As mulheres choravam baixinho fazendo uma coisa  ou outra.  Leandro manteve a bola  na garganta. Não chorava, mas não sentia menos dor, menos falta, menos vazio.
Naquele mesmo dia, tudo voltou ao normal, na medida do possível. Fizeram  as refeições, lavaram as louças, assistiram TV, foram tomar banho de mar, dormiram... Mas o vazio estava ali,  fazendo todas as atividades com eles.
Daquele  dia em diante, tudo seria assim: chegariam  e  se deparariam  com uma casa fechada e toda vez teriam que fazer tudo, abrir as lembranças, varrer as lágrimas  e tirar o pó da saudade. Tudo seria tão diferente de antes, quando o carro nem bem chegava à  calçada e  a mãe, já na porta  escancarada da garagem, com seu olhar azul  iluminado pela alegria de sua  chegada, já dava ordens pra empregada arrumar os quartos com lençóis perfumados, recém lavados  para que ficassem bem confortáveis.
Despedir-se da  casa, naquele final de semana, não foi mais fácil. Fecharam as janelas, as portas e passaram cadeado no portão. O veraneio estava recém começando e teriam que conviver com a sua ausência se quisessem aproveitar a praia.
Na sexta feira seguinte o cadeado não estava no portão. A porta da frente estava destrancada. A parte dos fundos estava aberta, as janelas escancaradas. No ar um cheiro de  vida. O vento  do litoral entrava e fazia dançar as cortinas. Num canto da área dos fundos um banheiro de gatos com areia recém colocada e dois potes, um com água e outro com ração fresca. Da porta da cozinha surgiu a gata Izzy com a cauda erguida, denunciando alegria em  vê-los.
Brincaram com a gata sem parar. Ora ela interagia com um, ora com outro. Cheirosa, recém saída do banho e pelo bem brilhoso, dava tapas em suas pernas quando passavam por ela sem alisá-la.
Guardaram seus pertences nos quartos e sentaram na sala. Tudo estava limpo e organizado. As duas geladeiras cheias de cerveja gelada.  Um cheirinho de comida caseira e temperada fumegava  no fogão.  A felicidade havia retornado.
Juntaram as cadeiras, o guarda sol colorido, a caixa com gelo e caipira e foram aproveitar a praia.   O sol estava radiante, o mar quase sem ondas e a água esverdeada. Contaram piadas, jogaram frescobol, caminharam por dez guaritas e voltaram.
O almoço estava na mesa  fartamente posta. Duas variedades de carne, muitos acompanhamentos  e saladas. Comeram enquanto conversavam e brincavam contentes por estarem ali num dia quente e ensolarado. A sobremesa caseira agradou a todos.
Domingo à tardinha retornaram para suas  casas em Vinha D’Alho. Não havia neles  aquela   dor da saudade.
Na sexta feira seguinte a tardinha , uma névoa espessa, estranha aquela hora, tomava conta do litoral. Leandro foi o primeiro a chegar com sua mulher e filhos. Os outros irmãos chegariam mais tarde, depois das seis. Izzy, faceira veio se roçar em suas pernas, miando contente  Acocorou-se e acariciou o pelo macio.
Leandro, apaixonado pelo mar como a mãe, foi até a praia, mesmo sem sol, caminhou pela areia e deixou as águas frias molharem seus pés. Respirou o ar salgado, sentou-se e pensou na mãe. Pela primeira vez, desde que ela morrera, deixou-se tomar pela emoção e chorou. Os soluços sacudiam seus ombros e as lágrimas corriam mais salgadas que o mar.
Depois de algum tempo decidiu voltar. De longe viu os carros dos irmãos estacionados dentro do pátio. Ouviu algazarra e risadas e quando se aproximou viu a mãe entre eles. O irmão mais velho chamou contente fazendo sinais com as mãos:

- Vem, logo. Estávamos te esperando pra abrir a champanhe.

Nenhum comentário:

Postar um comentário